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Sobre tudo o que se deve guardar
Emerson Dionísio

Crítico e Historiador da Arte


Lembrando a reflexão de Hans Jonas (em seu livro O Princípio Responsabilidade), o tempo da responsabilidade do homem sobre as coisas que cria é diretamente ligado a sua capacidade de destruí-las. Quanto mais fogo de seleção e aniquilamento nós temos, mais responsáveis nos tornamos pelas construções que disputam nossas memórias afetivas. È dentro dessa dinâmica, que a mostra de Marcelo Moscheta nos oferece a capacidade contemplativa de responder, de modo responsável e consciente, pelas nossas próprias seleções e afetos. Um chamado que valoriza, antes, nossa disposição para com o humano, para com uma paisagem que fale não de um lugar dado ou desconhecido, mas sobre um registro, talvez um códice que permaneça secreto. Suas obras falam justamente disso, da capacidade de construir ou demolir lembranças e da responsabilidade que elas denotam. De como somos capazes de eclipsar ou trazer à luz esferas contidas nas entrelinhas de nossas próprias histórias. Nesse sentido somos perpetuamente algozes e profetas.

Para nos lembrar dessa dubiedade, Marcelo Moscheta nos apresenta obras desenvolvidas a partir de um jogo de alteridades entre o artista e seu avô italiano. Nas obras encontramos paisagens da região onde o avô nascera - Treviso - e vivera até emigrar para o Brasil. São trabalhos desenvolvidos desde 2002 e que já renderam a Moscheta, dois anos sucessivos de premiações no MACCampinas, na última coube a série A memória do outro ser premiada no Edital 2003. Agora, contudo os trabalhos avançam em novas direções. Sua preocupação deixa de ser apenas a reconstrução de paisagens urbanas retiradas de antigos cartões postais e passa a focar nos processos de (des)construção da memória, em outras palavras, é como se o artista antes estivesse inclinado a lembrar e, agora, a esquecer.

Parece um desdobramento óbvio para sua trajetória, que como a de outros contemporâneos inclina seu trabalho sobre a auto-referência e a memória. Contudo a complexidade não reside na nomenclatura, mas sim na operação. Os lugares mostrados aqui nunca foram visitados pelo artista, são virtuais na sua práxis, mas pertencem a ele como a todos nós. Suas paisagens aludem ao jogo perpetuo da memória e, sobretudo, a experiência derradeira que levou Moscheta a mergulhar sobre suas raízes, num esforço sincero para superá-las. Nesse mergulho, encontramos a manipulação da imagem como fonte exclusiva da sedução do olhar, como raramente se vê na arte contemporânea. O artista captura seu espectador através do olhar, sem a necessidade de usar malabarismos conceituais. E o olhar nada mais é, muitas vezes, do que uma inquieta necessidade de tirania aplicada às coisas da alma.

Usando da gravura, seu habitat natural, o artista decompõe a paisagem em milhares de partes que juntas tentam formar a paisagem sugerida. Contudo, quanto mais solicitamos a essa fragmentação, uma vez compactada, que deposite em nosso olhar uma inteireza da Porta San Tomaso, mais somos arremessados no velho dilema: não basta reunir para ver. Os fragmentos vistos de longe permitiriam, talvez, mediar as distâncias, mas não indicam as direções. A paisagem é construída em nós, busca em nossa memória associativa os contornos necessários à materialização do visível. Mas nesse jogo onde o olhar impõe-se aos demais sentidos, a operação de caça em nossas lacunas e desvios é onde está a poética do artista.

Não é apropriado, contudo, pensar em Moscheta como um artista que mire na releitura de seu passado ou em qualquer resgate de outras memórias. Sua disposição para com a matéria visual tem, antes, um caráter de tradução que de assimilação. Nessa perspectiva, que tem na linha uma partícula gerativa e no desenho uma célula que muta em direção à gravura ou à colagem, o artista paulista usa meticulosamente cada parte do papel para circunscrever linhas tencionadas na lógica do virtuose que muito aplica e nada defende. A regularidade dos traços de Moscheta indica o conhecimento acerca de sua maior ou menor consistência e mesmo domínio sobre o que está sendo buscado. Seu trabalho é, portanto, o reflexo metódico entre aquilo que se pretende criar e o modo como se cria . Sem separar essas instâncias, o artista ao riscar, manchar ou apagar – como demonstra a série de três desenhos da Torre do Observatório Astronômico de Pádova – não só nos dá pistas em torno das possibilidades de desdobramento das linhas, da velocidade e da pressão necessárias à obtenção de certas configurações, mas como, também, antecipa a poesia a ser construída, aquela que pede licença para entrar no papel, não faz barulho, não incomoda, mas tampouco ficam pelos cantos pedindo atenção e assentimento. As linhas buscam-se umas as outras. Ligam-se pela meticulosidade do cálculo, mas como um certo tom de gratuidade. Moscheta constrói suas grandes arquiteturas através de gestos contidos, pequenos um tanto discretos, tem a dimensão da mão, embora queiram fugir disso. As inserções serigráficas com desenhos típicos da pintura em azulejaria portuguesa e provençal apenas nos informam que tais imagens são a combinação remota entre aquilo que o serviu – as imagens de antigos cartões postais italianos – e sua construção imagética.

Raramente podemos assistir um encontro bem sucedido entre a seriedade e a ousadia. Sobre tudo o que se deve guardar é um desses momentos, cujo mérito está em construir uma mostra coesa, tecnicamente competente e, simultaneamente, provocativa. A exposição do artista Marcelo Moscheta dentro dessas fronteiras, é um grande exercício do olhar para seus frutidores. Suas criações são capazes de construir um formidável jogo cênico, onde somos arremessados às imagens como se elas tudo dissessem, mas que na verdade se calam, discretas e astutas, escondendo seus melhores segredos, pois sabem, elas, que quem tudo diz nunca é Arte.


texto para o catálogo da individual Sobre Tudo o que se Deve Guardar - MACC, 2004.