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Quase/Casa
Emerson Dionísio

Historiador e Crítico de arte



A imensidão dos espaços nos quais é possível se perder afina-se estranhamente ao pormenor, delicado, tecnicamente calculado. Expansão e paralisia. A espontaneidade é evitada, e o processo de pesquisa, de tão minucioso, oferece-se como componente inevitável para a produção de um leve rumor no tempo; um quase-silêncio, que se ampara sob a matéria, cuja indiferença em relação a nossa consciência nos oferece mais quietude que sentido. Os mecanismos e as técnicas estão a um passo do ilusionismo. Todavia, o desejo anônimo esvazia a vaidade tecnológica; restam-nos imagens- laboratório. Próximas, mas irrealizáveis fora da poética que a constituiu. Tudo isso oferece pouco apoio, pode paralisar alguém ou deixá-lo cair num universo unívoco e estéril, não fosse a presença do afeto-frio da memória e a do silêncio-opaco do território: elementos tão próximos quanto intangíveis, eis a beleza sem medo, ou quase.

A poética do quase é um bom pressuposto para se compreender a trajetória de Marcelo Moscheta. Trajeto, aliás, é uma palavra perigosa para descrever o encadeamento de obras reunidas neste livro e que pretendem apresentar parte da produção deste artista. De tão coerente e cioso com seu trabalho – uma boa palavra: trabalho –, Moscheta nos oferece uma poética intercambiável, que não se presta a uma leitura evolucionista-progressiva. O diálogo entre as obras produzidas para diferentes fins, espaços e eventos é tão íntimo que não deve ser detido numa falsa cadeia matemática a que chamamos de cronologia. Melhor pensar como a poética de Moscheta tem-se apresentado aos olhos da cena contemporânea da arte brasileira e internacional.

Se a biografia ajuda a compreender o processo criativo de um artista, ela também pode soar como uma saída presunçosa para artistas contemporâneos que ceiam na autorreferência. A presunção está marcada pela causalidade direta, sem consciência dos desvios. Insectae Universalis, um projeto amplo, apresentado em diferentes configurações entre 2000-2003, aparece-nos como um índice da poética que já prenunciava o olhar catalogador deste paulista-quase-paranaense, que, ao aludir a uma prática científica de investigação, também resvala no colecionismo: um universo apartado, que reúne, além do desejo obsessivo, elementos como ordem, fixação e posse, aos quais estarão relacionadas às obras imediatamente posteriores e que transformam suas pesquisas em trabalhos autorreferentes, não necessariamente biográficos. Podemos procurar no pai biólogo o cientista debruçado sobre a classificação do mundo. Pode ser. Mas há desvios que devem ser observados nessa matemática direta: a reclassificação – o artista prefere reordenação – do mundo contém, desde aqui, um ruído e uma inquietude.

O ruído surge da apropriação do outro. Pai, avô, família, ciência... o mundo. Não se trata de um espelhamento ou um tributo, mas uma aproximação que gera distância. Um Outro que me instiga e forma, mas o qual não possuo. Já em 2003, o artista começa a preparar uma série de trabalhos denominados Paisagens que não conheci; desenhos de monumentos, de paisagens urbanas e “naturais”. São reconfigurações de cartões postais italianos, coletados nos arquivos familiares, na busca de uma memória sobre o avô imigrante, que não chegou a conhecer. As paisagens, como a memória indireta legada pela família, não estão nítidas, tangíveis. Há as histórias não narradas, ou ao menos não completamente narradas, por estes vestígios de um passado inalcançável e um território não visitado – naquele momento Moscheta ainda não conhecia a terra natal do avô.

A “voz” do passado que se faz ouvir está esmaecida pela intermediação. Como num trecho da epopeia íntima de Marcel Proust, Moscheta reconstrói seu sentimento de ausência por meio dos vestígios; neste caso, pequenos cartões postais que instauram apenas uma garantia de poder lembrar, de poder narrar, nada além. Essas imagens que não se completam refletem um conhecido/desconhecido de um ente amado e ausente. O artista é muito sensível à singularidade dos percursos, à manipulação do arquivo, à parte de emoção deixada pelas existências passadas; ele não procura congelar as identidades nem preencher as lacunas de conhecimento impondo uma grande leitura do passado ou do mundo. O artista oferece-nos apenas parte de sua intimidade, com tamanha ordem, obsessão e controle que a monumentalidade – uma improvável grande leitura do mundo – perde seu caráter antipático.

Mas ainda há a inquietude. No mesmo ano, Todos esses dias, no Ateliê Aberto, em Campinas, apresenta uma outra face da questão. A diluição da imagem anterior toma corpo num quebra-cabeça de tonalidades; pequenas gravuras em metal sobre PVC dão corpo a uma imagem previamente captada e manipulada. A engenharia da obra merece atenção: com centenas de pequenos fragmentos gravados, o artista nos apresenta a imagem da paisagem externa alocada sobre uma parede interna lateral à janela que, em tese, deixa ver tal paisagem, como se fosse um reflexo e uma suspensão do que se pode ver de dentro.

Em 2009, na Bienal de Gravura do Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Liège, Moscheta retoma a mesma premissa, com uma diferença crucial: em 96 Jours, o artista fixa as estampas direto numa parede e dá, pelo título, pista preciosa sobre o tempo decorrido entre a retenção da imagem externa pela fotografia e a fixação da mesma imagem, enquanto gravura, esmaecida na parede do museu. 96 dias ajuda-nos, retrospectivamente, a entender Todos esses dias. O deixar-ver não é apenas uma poética sobre o espaço fixado, é uma inscrição na pele do território onde a imagem é significada como quase-duplo. É também a paisagem enquanto memória. Enquanto tempo. É só o começo para um artista com uma capacidade impressionante de manter projetos poéticos paralelos que se interpenetram, oferecendo-nos um grau de coerência atípico na arte contemporânea.

A obra-painel Porta San Tomaso une a inquietude e o ruído. É a primeira de um conjunto em que Moscheta intensifica sua pesquisa sobre a diluição de fragmentos. Criada para a individual “Sobre tudo o que se deve guardar”, no Museu de Arte Contemporânea de Campinas, em 2004, o painel exibe a contramonumentalidade de Moscheta. Mais uma vez uma imagem italiana: referência anterior, tomada e manipulada como emblema de um passado-futuro atribuído. Futuro enquanto expectativa de vir-a-ver, poder estar longe e perto. Espaço e tempo indissociáveis.

A percepção da Porta San Tomaso foi posteriormente afetada por outras duas obras, que já apontavam para um realinhamento em sua poética: Paisagem em permanência (2004), premiada no 4º Salão Nacional de Artes de Goiás e Dormitório (2006), apresentada na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. Nas duas estavam inscritas na mesma lógica fragmentária e apropriativa da Porta.... Todavia elas nos oferecem dois breves acenos com preocupações prementes da arte de Moscheta.

O primeiro aceno singulariza o modo como ele percebe o mundo; em Dormitório – imagens dos alojamentos da antiga Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo por onde passou seu avô – a ausência do humano torna-se asfixiante, basicamente porque ele está lá, contido no derradeiro jogo moderno da representação: a presença pela ausência. O artista não explora a humanidade enquanto corporeidade. Lentamente, nos anos seguintes, ele mesmo deixará de lado seus vestígios. Talvez considere a contemporaneidade barulhenta demais; o corpo objetificado em excesso; pretere o exibicionismo em favor do voyerismo. Ou tudo isso, ou quase isso. Ele retoma o humano nas projeções das fotografias originais de Frank Hurley, um dos exploradores pioneiros do continente antártico, em 1914; como na obra Ilha Elefante, 24 de abril de 1916 (2010). Homens dedicados a explorar as últimas latitudes mapeadas e conhecidas. O planeta desvela-se ou quase. Mesmo aqui, o humano é derivado das novas fronteiras; as paisagens se apresentam.

Passemos ao segundo aceno. Paisagem em permanência não foi a primeira obra do gênero paisagem que Moscheta realizou, sua presença está nos primórdios de sua formação. Entretanto ela funciona como um elo entre as poéticas da memória e a poética da paisagem. Ars memoria e creatio continua. O artista conquista o prêmio aquisição no 12º Salão da Bahia (MAM-BA) e adentra numa dos acervos mais prestigiados da arte brasileira: coleção Gilberto Chateubriand (MAM-RJ).

Em 2006, na III Mostra do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, o público pode apreciar a maturidade técnica com as nuvens da série Metereológicas (2005-2006). Esta série, juntamente com Efêmeras (2004-2005), já apontava para novas preocupações do artista: a natureza está imersa numa atividade constante e revela-se para nós a todo momento. Apesar de toda tecnologia, todo ruído, ainda há o silêncio.

Eis o mistério, o tédio, a melancolia, a quietude: a memória da T/terra. Apresentada no Paço das Artes de São Paulo, em 2007, Still é o nome dado à série de obras que, desde Efêmeras, matiza a técnica de desenho com grafite sobre PVC expandido. Técnica que introduz as imagens da precariedade, os desenhos sob o PVC preto são realizados apenas com grafite e borracha. A fixação é incerta, e a transitoriedade da matéria contrasta e dobra o instante captado do movimento das nuvens. A inspiração veio da fotografia. Mas há também o sentido da pintura: depositar diretamente sobre a superfície a matéria. Moscheta realizou várias séries com essa técnica. Apresentou-nos nuvens, rochas, montanhas, geleiras, fiordes, cânions, desertos terrenos e marcianos.

No mesmo ano, o prêmio-residência na École des Beaux-Arts de Rennes, pela Fundação Iberê Camargo, possibilitou ao artista desenvolver projetos com paisagens da Bretanha, norte da França, situada dentro do paralelo 48. O projeto 48éme Paralèlle Nord: Paysage, uma série de trabalhos denominada A nova paisagem do Paralelo 48; cartões postais – eles novamente –, aquarela e impressão jato de tinta sobre papel. São apropriações reintroduzidas no amplo catálogo sobre as paisagens à beira-mar do litoral bretão. A recriação de um “espaço” natural – a praia, os rochedos, a flora – inscreve a paisagem como lugar retórico. Com a intervenção, Moscheta introduz uma perturbação “estrangeira” à paisagem-fragmento dos postais; uma imagem patenteada que contraditoriamente expõe sua matriz romântica e idealista. Novamente passado e futuro são perspectivados numa demonstração de que qualquer representação da paisagem é apenas um momento, um lugar, um construto do que podemos imaginar como natureza. Não é mais a natureza posta ali que é a meta a alcançar, mas o modo como ela pode ser apresentada, um código cultural. Uma invenção.

Outra residência de suma importância para o refinamento reordenador do artista deu-se dois anos depois, na 15ª Bienal de Cerveira, em Portugal. Com Displacing Territories: Galiza Projetc, o artista enfatiza o sentido de “memória do lugar”. O trabalho resultante é o deslocamento de pedras colhidas e catalogadas na Galícia espanhola e transferidas para o território português. Num ato de arqueologia local, Moscheta escolhe suas musas, que servem de modelo a novos desenhos. A montagem da instalação é apenas a ponta de um amplo processo artístico. Atravessar fronteiras. Selecionar: ato mnemônico. Nomear e ressignificar. Mimetizar/representar.

Sabemos que o passado é alcançado pelos vestígios, e parte considerável dele é fruto de uma dialética complexa entre conservação-destruição e reconfiguração. Moscheta evidencia parte dessa estratégia ao produzir um novo enquadramento para as pedras. Elas não só mudam de país ou cultura, mas mudam sua condição. De índice incerto para arqueologia, elas passam a resíduos simbólicos do labor artístico. Do sítio à coleção. Mais uma vez a obra exige um olhar alongado. Galiza Projetc evidencia tática fundamental da arte contemporânea desde a redescoberta da arte de Duchamp nos anos 1970.

Em “Terra Incognita”, mostra na galeria Riccardo Crespi em Milão, em 2009, Moscheta reuniu obras que sintetizaram as poéticas exploradas nas duas residências na Europa. Cartões, fotografias, videoinstalações, monotipias, gravuras, desenhos, mapas etc., utilizados para explorar e refletir sobre a voracidade das imagens praticadas pelo homem para possuir seu território. Ao oferecer paisagens imaginadas, imagens retocadas, topografias alternativas, simulações de fotografias ou releituras de ícones da arte ocidental, Moscheta pergunta-se qual o limite para o conhecimento? A série Satellite é uma risonha, mas contundente, ficção sobre a representação. Fotos que parecem ser tiradas por satélites não passam de um exercício primoroso da poética abstrata: tinta pigmentada sobre papel de algodão nos oferece florestas, geleiras, desertos, rochas e praias. A beleza pseudomáquina demiúrgica funciona como impressionante crítica da força das aparências na sociedade contemporânea.

A obra de Moscheta, frequentada em seu conjunto, pede-nos um alerta necessário: táticas e cálculos produzem uma metodologia de trabalho que o distancia da estética romântica. Em sua individual Zero, em 2007, na Léo Bahia Arte Contemporânea, em Belo Horizonte, as paisagens poderiam induzir o espectador a uma contemplação do absoluto espiritual. Todavia a luz da paisagem romântica e sua náusea aristotélica ao horror vacui não estão presentes. Void, o vácuo, não é um problema.

O artista apenas toma do romantismo clássico franco-alemão o sentido de estranhamento da cotidianidade, figurada pela natureza enquanto lugar poético. A primeira e última fronteira. E há o tédio, e nenhuma crença na ciência como redenção. A contemporaneidade apresenta-se como desativadora. As obras apresentadas na mostra “Latitude”, na galeria Anita Beckers em Frankfurt, em 2008, indiciam-se como paisagens mapeáveis, constituídas pelo olhar investigativo de quem usa as coordenadas do Sistema de Posicionamento Geográfico; a ironia revela-se pela localização, por meio do GPS (latitude, longitude e altitude), de conjuntos de nuvens como podemos ver no desenho em grafite sobre PVC: Cloud (NTRCTC#1) do mesmo ano. As nuvens são antiformas: são mais livres do contexto e, até, de si mesmas, imprevisíveis e estranhamente palpáveis nos desenhos. O efêmero, instável, movediço apreendido num breve instante. Onipresença da tecnologia e a fugacidade do que não se pode controlar.

Relê a poesia na quietude de uma geleira à Caspar David Friedrich (2008) e na paisagem árida de marte (série Mars: Equivalent Landscapes de 2007). Como o artista romântico alemão e a sonda espacial americana, Moscheta toma posse da visibilidade desses espaços e não de sua concretude, que, aliás, é indissociável, em sua pretensa autonomia, do modo de ver o mundo: a paisagem. O cálculo dessas proposições que governam a cenografia dos elementos naturais de Moscheta mais uma vez podem ser atribuído a sua personalidade ordenadora, colecionista, metódica, mas não só. Ao entrar nesse questionamento desde 2005, o artista se lançou à caça da poética do/no espaço. Um investigador intuitivo. Muitas vezes um manipulador infantil: Quem, quando criança, nunca pensou que as nuvens seriam bolas de algodão?

Ele parece preocupado com o a priori das visibilidades que definiam a paisagem. É na direção do espaço tridimensional que surge uma bem-sucedida mostra chamada “Gravity”, na Galeria Leme, em 2009. Antes é preciso informar: não foi na Leme que Moscheta debutou no mundo das intervenções espaciais. Em 2007, na mostra no Paço das Artes, ele apresenta-nos RGB (red, green and blue), uma instalação constituída de caixinhas terminais transformadas em pequenos backlights de paisagens fotográficas coloridas de elementos naturais orgânicos, uma atipicidade em sua poética. Com diferentes argumentos e cores, outras edições utilizarão o mesmo recurso de RGB, em situações que empreendem um diálogo com o espaço e redefinem a paisagem como fragmento (as estampas transformam-se em luz), como em Circulo Polar Ártico (2007): uma engenhosa sequência de imagens em caixinhas, que denuncia o derretimento do Ártico, e que Moscheta remonta com a presença de blocos de gelo lentamente derretidos. E The Summit Series: uma série de 20 caixinhas de luz com imagens dos picos nevados montanhosos, presentes na Leme em 2009. O espaço é, agora, o tempo que o ato transforma sem cessar.

Diante dos The Summit Series: a série Pedras. A arquitetura minimalista e austera de Paulo Mendes da Rocha parece ter sido particularmente projetada para receber estas obras de Moscheta. O artista tem enfrentado muitos desafios com os espaços institucionais nos últimos dez anos. Estratégias e realocações foram criadas para conciliar – ou mesmo evidenciar o litígio, como foi o caso da mostra na Fundação Joaquim Nabuco – as necessidades de visibilidade de suas obras e as arquiteturas institucionais. Este sem dúvida tem sido um dos pontos mais importantes em sua trajetória: a compreensão, a constituição e a adequação de sua obra aos espaços diversos que a acolhem.

Na Leme foi diferente. Houve uma comunhão dos lugares. Principal obra da mostra, Pedras antecipava o conceito apresentado no Galiza Project da Bienal de Cerveira, no mesmo ano. Colhidas no distrito de Joaquim Egídio em Campinas, as pedras não estão mais amontoadas. Peso, leveza, flutuação e fixação são elementos poéticos evidenciados. Numa expografia que nos impele a uma dimensão espiritual, as pedras-relíquias escolhidas são expostas sobre placas de ferro e alumínio, em que estão gravados os dados, fornecidos pelo GPS, de onde cada pedra fora encontrada: o DNA de determinado espaço.

Ainda em 2009, Moscheta nos lembra de que a arte também é o que apresenta uma ficção como realidade, com a instalação Estudo para espaço, exibida na mostra da edição 2008/2009 do programa Rumos Artes Visuais, do Instituto Itaú Cultural, em São Paulo. Encapsuladas em caixas transparentes de bombons reutilizadas, as nuvens ganham corpo tridimensional graças a maços de algodão meticulosamente arranjados e iluminados. O jogo de reflexos cria um ambiente telúrico. As imagens percebidas e as imagens supostas ativam um sentido de posse lúdico: como se pudéssemos brincar de possuir nuvens.

Num ano produtivo, mais uma experiência de apropriação. No projeto para o 13º Festival da Cultura Inglesa, em São Paulo, Moscheta utiliza o tratado Alexander Cozens de 1786, “A new method of assisting the invention in drawing original compositions of landscape”, e recria, quase didaticamente, novas nuvens sobre PVC. O seu New Method for assisting the invention in the composition of clouds (2009) funciona como um tributo ao passado, ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre uma época em que a reprodução técnica da imagem pode não funcionar como norteadora da realidade, pois ela é a própria realidade.

A história da arte enquanto elemento inspirador também pode ser vista na intervenção Contra.Céu (2010), instalação projetada especialmente para Capela do Morumbi. O artista aceita o desafio de adequar sua obra às particularidades da histórica construção. Como nos altares-mores (retábulos e nos tetos) do passado colonial, o céu ocupa o antigo espaço votivo da capela. No entanto, Contra não se deve apenas à angulação singular – o desenho tem sua imagem refletida logo abaixo, no chão, dobrando seu tamanho original –, mas também à negação da ascese convencional. A paisagem cinzenta e dobrada, num jogo de ilusão, impele à fascinação investigativa. O artista cria, em estado permanente de tensão, uma expectativa constante que fazia o visitante caminhar pelo espaço à procura de um ângulo que desfaça a ilusão de óptica ou a potencialize.

33 montanhas e Void foram as obras vencedoras, em 2010, do Prêmio Júri Popular do PIPA (Prêmio Investidos Profissional de Arte), expostas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Void é anomia imposta à linguagem cartográfica dos mapas urbanos. O artista recorta as informações e deixa o espectador livre para relocalizar(-se): os 33 desenhos de montanhas em grafite sobre PVC expandido, fixados em barras de ferro enferrujadas e perfilados, de modo a fragmentar um possível grande desenho de uma cordilheira. Como uma vida de 33 anos – idade do artista na época –, que não pode ser completamente narrada em sua exterioridade, mas cujo interior pressionado, envelhecendo, é um mutante, misterioso e multifacetado. É o artista, agora no centro, criando uma obra enraizada no contexto de sua vida e na singularidade de seu caráter.

Atlas é a mais recente exposição do artista na Galeria Leme (2011). A obra homônima, especialmente produzida para mostra, apresenta oito desenhos representando os planetas que formam o sistema solar, reproduzidos na dimensão exata em relação à Terra e amarrados por um cabo de aço. Sustentação, peso e estabilidade. Atlas não é apenas o titã grego condenado por Zeus a sustentar o céu pela eternidade. É também toda uma engenharia da curiosidade humana que nos remete à incessante busca pelo domínio do espaço e seu continuo e precário equilíbrio. O mesmo equilíbrio problematizado pela utilização do princípio da paralaxe (conceito astronômico que mede a distância de um corpo celestial, utilizando dois pontos de vistas distintos do mesmo objeto) na série Parallax (2010-2011). Também na mostra, Moscheta retoma os cartões postais antigos. Desta vez, montanhas nos Alpes italianos: Pouliguen e Valsassina (2011); numa reinterpretarão magrittiana: temos grafites sobre PVC, emolduradas em ferro e sustentadas por pedras. Mais uma vez a paisagem surge como questão fundamental de como compreender e lidar com os graus variáveis de proximidade e distância em relação ao “outro” que está tanto fora – paisagens e planetas - quanto dentro de nós mesmos – a percepção e representação que deles temos.

Moscheta é um artista que produziu, nos últimos dez, uma obra marcada por aquilo que, atrevidamente e anacronicamente, podemos denominar como “estilo próprio”. Suas criações conquistaram espaço em pequenas e grandes coleções: Galeria Haidée Santamaría (Cuba) e coleção Gilberto Chateaubriand (MAM-RJ). Participaram de diferentes feiras de arte: ARCO (Espanha) e SP-Arte (São Paulo). Foram aprovadas e premiadas em eventos com ambições díspares: Prêmio Estímulo (MAC-Americana/SP) e 7ª Bienal Internacional da Gravura Contemporânea (Bélgica). Estimularam a imaginação de públicos em distintas proposições curatoriais: “O livro da memória” (Unama-Belém/PA) e “Mare Incognitum” (Centro Universitário Maria Antonia – São Paulo). E enfrentaram espaços simbólicos desiguais: Capela Morumbi (São Paulo) e Flamboyant Shopping (MACG-Goiânia).

Nessa rica trajetória, em que paisagem, tempo, apropriação, espaço, memória e história se tornam questões-chave para sua compreensão, há um elemento que não pode ser esquecido: Casa. Uma pequena obra de 1999, de 35 x 27 cm, sob o defectível rótulo de “técnica mista”. Mais de dez anos depois, Casa é uma espécie de anunciação da coerência, orientadora da interpretação, que pretende fornecer as chaves essenciais da leitura de uma obra calculadamente controlada. Ela exprime um ponto importante da personalidade dessas obras: elas gostam mais do silêncio do ateliê que do burburinho das galerias. Paciência. Antecessor, esse esboço, dirão alguns, aponta o rumo a tomar para a descoberta das demais obras: ainda há muita coisa a ser descoberta. Pelo artista e por nós, seus observadores: curiosos e fascinados.


texto para o livro MARCELO MOSCHETA, editora BEI, 2011.