Oréades: geografia e mitologia de uma exposição de Gabriela Albergaria e Marcelo Moscheta
João Fernandes
CuradorUm centro cultural oficial convida dois artistas para uma exposição numa embaixada do seu país. Esta seria uma notícia anódina, mais ou menos pública consoante os canais de comunicação, mais ou menos reconhecida consoante os canais de legitimação. As circunstâncias de tal convite, as obras dos artistas convidados, a natureza dos trabalhos escolhidos e/ou realizados especificamente para esta exposição, o seu lugar de apresentação e o momento em que ela se concretiza originam porém uma situação que não será só merecedora da atenção dos canais referidos, seja de quem se interesse pela relação entre arte, cultura e diplomacia, seja de quem se interesse pelas formas e conceitos da arte propriamente dita, e particularmente pelas obras dos dois artistas nela participantes. Considerando o que a exposição nos apresenta, os seus resultados Interessarão igualmente a uma recepção que se deseja o mais ampla possível, sendo ela merecedora também da atenção de todas as pessoas que encontrem no mundo atual motivo de preocupação, reflexão e ação em relação à interseção entre as condições da vida humana no planeta e as condições de um planeta cada vez mais condicionado e afetado pela forma como a vida humana não só o habita, como igualmente o ameaça, comprometendo a sobrevivência de todas as outras formas de vida que nele coexistem e as próprias condições naturais do planeta que determinaram a sua possibilidade e realidade.
As coincidências complementares
A exposição ocupa os espaços interiores e exteriores da embaixada de Portugal em Brasília. Os artistas convidados são uma cidadã portuguesa, Gabriela Albergaria (Vale de Cambra, Porto, 1965) e um cidadão brasileiro, Marcelo Moscheta (São José do Rio Preto, São Paulo, 1976). A cidadania não está afastada de uma preocupação cívica à qual nos poderão convidar os seus trabalhos, mas essa cidadania não se circunscreve a um país, ela não se resume a um território, a um estado. Compartilhando modos de fazer que originarão diversos modos de ver, tão pouco essa cidadania globaliza as suas referências: os artistas preferem especificar detalhes e reinventar o lugar onde se revelam os seus trabalhos, tornando-o único e especial em função da natureza específica das obras de arte que agora nele descobrimos, do desafio das suas diferenças em relação a uma pressentida e imanente universalidade.
Os artistas intitularam a sua exposição Oréades. Em 1824, Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), descrito hoje na Wikipedia como “médico, botânico, antropólogo e um dos mais importantes pesquisadores alemães que estudaram o Brasil (...), seguidor da taxonomia de Lineu”, sistema de identificação e classificação dos organismos vivos, foi à mitologia grega buscar o termo “Oréades” para nomear a região do Cerrado brasileiro. O bioma brasileiro do Cerrado, em cujo território se localiza Brasília, é o segundo bioma mais extenso do país, sendo considerado também a maior savana do mundo em biodiversidade, numa área de cerca de 2 milhões de km2.
Por sua vez, as Oréades eram ninfas que habitavam e protegiam montanhas e cavernas, de vida longa e sem envelhecimento. O eurocentrismo científico colonial não terá possibilitado a von Martius a busca de equivalências vocabulares nas identidades dos povos originários que decerto encontrou na sua viagem pelo Brasil, o que era “natural” num homem da sua cultura no tempo em que viveu. Na sua estranheza culta, o título da exposição não deixa no entanto de interpelar o visitante como uma interrogação de todo um processo histórico-cultural para o qual o remete.
Gabriela Albergaria e Marcelo Moscheta são dois artistas contemporâneos que constroem os seus trabalhos a partir de referências que a história recente das artes visuais lhes oferece, na diversidade de materiais e de práticas artísticas que nela encontram, selecionam e combinam, dos quais e das quais se apropriam nas suas obras específicas. O desenho, a fotografia, a escultura, a instalação, a pintura e o vídeo são suportes por eles utilizados como recursos que expandem as possibilidades de cada um dos gêneros artísticos que lhes possam subjazer, num convite a uma inteligência multisensorial despertada por cada trabalho. Materiais encontrados juntam-se e cruzam-se em modos só possíveis através da arte da sua combinação ou dos processos artísticos protagonizados de forma distinta por cada um dos artistas. O processo de trabalho faz aliás parte do próprio resultado, como revela a cuidada documentação que muitas peças assumem e revelam. Reminiscências das linguagens de uma arte conceptual e pós conceptual são perceptíveis não só nos trabalhos, como também nos discursos que sobre eles os artistas nos apresentam, como é constatável nas entrevistas com os dois artistas editadas nesta publicação. Compreender, interrogar, subverter e transformar cada lugar onde estas obras são apresentadas integra o próprio trabalho, num processo condutor da sua existência, originário da exposição.
A consciência da exposição Oréades decorrer numa embaixada em Brasília, utilizando com mestria as possibilidades que propiciam tanto os seus espaços interiores, como os espaços do jardim circundante, será um princípio operativo da metamorfose que os artistas protagonizam no lugar que as suas obras habitam: não perdendo a identidade das suas características arquitetônicas e funcionais, esse lugar é reinventado e interrogado a partir da presença nele das obras de arte. O(a) próprio(a) visitante será convertido(a) de espetador em participante interrogado(a) na sua presença, independentemente das razões que o(a) levem a estar ali. Para tal, os artistas adaptaram obras aos lugares em que agora são apresentadas, ou criaram obras específicas para a exposição. As ilações que cada um possa apreender da situação do seu contato com estas obras interroga a própria consciência simbólica do lugar em que se está, indefinindo-o nessa ambiguidade pela qual a arte interroga as condições e as percepções da vida: estaremos num jardim, numa embaixada, num centro cultural, em Brasília, em Portugal, no Brasil, no mundo? Será da sensibilidade e da reflexão de cada um(a) que cada visitante poderá construir um percurso por uma cosmogonia que lhe seja particular nesse itinerário que as obras dos artistas re-situam em relação às convenções pre-existentes da visita.
Gabriela Albergaria e Marcelo Moscheta compartilham algo de muito forte que lhes é comum: é a partir da natureza, enquanto realidade e representação, que os seus trabalhos são feitos. Encontrar, reunir, juntar, colecionar, combinar, transformar, desenhar, pintar, fotografar, filmar, instalar são verbos que encontram na natureza um substantivo comum declinado nos casos e possibilidades infinitas que a obra de cada um possibilita. Além das referências assumidas e detetáveis nos processos de fazer dos dois artistas, as suas obras protagonizam igualmente exemplos distintos do que poderá ser formulado como uma “arte ecológica”, seguindo a definição que um artista português, Alberto Carneiro (São Mamede do Coronado, Santo Tirso, 1937 – Porto, 2017) formulou nas suas “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”, escritas entre 1968 e 1972: “A arte ecológica será o renascer duma alegria natural no encontro com a natureza renovada e infinitamente próxima: obra em mutação na consciência do inconsciente dum tempo e outra vez nominada na posse de sensações estéticas futura e naturezamente reversíveis”.*
A consciência do lugar em que estamos, uma embaixada numa cidade como Brasília, não só capital de um país mas coração de um bioma como o do Cerrado, ameaçado na sua riqueza e diversidade por acontecimentos do presente, como os trágicos incêndios e queimadas que têm sido notícia mundial, inspira interpretações e desafia leituras e posicionamentos ou formas de ação, entre as quais podemos contextualizar precisamente esta exposição, de coerência exemplar com o modo como cada um dos artistas tem eleito a natureza como tema e material das suas obras. Múltiplas intuições se convertem e desdobram em coincidências e correspondências. As afinidades electivas complementam e posicionam cada obra em relação às outras num processo de descoberta, conhecimento e reconhecimento plurais.
Uma obra de cada um dos artistas marca e apropria simbolicamente, pela sua dimensão, escala e materiais, o percurso do visitante pela exposição. Hiato (2021), de Marcelo Moscheta, abre uma fenda, cria uma lacuna física e metafórica ao adicionar um caminho aos caminhos do jardim da Embaixada, entre duas áreas por onde se encontram distribuídos galhos secos de espécies endêmicas do Cerrado e de espécies exóticas ao Cerrado, suspensos em suportes de ferro que relembram memórias de práticas agrícolas, enquanto ação humana sobre a natureza. Por sua vez, Gabriela Albergaria, em 1/20 de terra cultivável necessária para preencher o espaço da galeria (2021), surpreende o espaço de uma das salas da Embaixada, dando forma a um volume retangular de terra local vermelha, à qual juntou terra preta e terra roxa levada de outros lugares do Brasil. Ambas as obras adicionam complexidade aos lugares em que se encontram instaladas; “dentro” e “fora” abandonam as suas funções adverbiais para construírem uma outra enunciação do lugar, das suas circunstâncias e interpretações, sujeitos de uma outra sintaxe alternativa às convenções da funcionalidade definidora do espaço.
Listar, seriar, identificar, catalogar são processos da metodologia científica de que os dois artistas se apropriam, transferindo-os para as poéticas particulares dos seus trabalhos: deste modo numa série como Antes (2021) Marcelo Moscheta apresenta um conjunto de espécies arbóreas do Cerrado representadas através de monotipias em papel carbono sobre papel Saunders, um papel requintado utilizado tradicionalmente para a aguarela, relembrando os desenhos dos pintores viajantes de outros tempos, ou a tradição paisagística anglo-saxónica, mediada pela consciência dos processos de reprodução e impressão da história da fotografia. O resultado é um singular e belíssimo álbum botânico montado na parede num xadrez mural, transferindo o desenho para o espaço, reinventando nessa montagem o lugar em que são apresentados. Gabriela Albergaria apresenta uma “carta de cores” de Brasília (Color Chart Brasília (2019/2021) na qual representa com lápis de cor os tons quentes da terra da região, como nesses catálogos de pigmentos que levaram outras terras distantes à história da cor nos materiais da pintura. Listando e reproduzindo verticalmente essas tonalidades térreas, Albergaria transfere para o desenho com uma simplicidade tão elementar quanto essencial, o mesmo tipo de interrogação com a qual Gerhard Richter confrontou a pintura nas suas Colour Charts.
Em algumas obras de Albergaria e de Moscheta, a representação de elementos naturais, sementes, árvores, ramos, cortes de troncos, surgem desenhados, fotografados, impressos, através de várias estratégias e dispositivos combinatórios na sua instalação espacial. Todas essas obras são simultaneamente material, processo e resultado, como ocorria nos registros documentais de tantos pintores e desenhadores viajantes nas expedições científicas pelo Brasil do século XIX, cujos cadernos de notas estas Oréades muitas vezes relembram.
Numa projeção vídeo patente na mostra (Marcelo Moscheta, Pau-Brasil, 4’30’’) mãos aparam um ramo com uma tesoura, ressoando eletronicamente o som de cada corte; numa escultura de Gabriela Albergaria um tronco de árvore aparece cortado a meio, sendo o espaço oco entre as duas partes preenchido por uma viga de madeira fabricada industrialmente. Duas metáforas para o fim de um texto sobre uma exposição fractal, que não deixa de ser também encontro de dois artistas com ideias próprias “para adiar o fim do mundo”: como na geometria fractal, cada uma das suas peças nos pode levar muito longe, a uma geografia em que as relações entre a natureza e ação humana sejam reciprocamente adjuvantes, e esta última não se revele (auto) destruidora da primeira.
Ambos os artistas constroem nesta exposição “conversas” entre as suas peças que se revelam como outros tantos diálogos fascinantes e subtis, entre as suas obras e o lugar em que são apresentadas, entre esse lugar e a cidade “sui generis” que o situa, entre a cidade e o Cerrado, nesse percurso fractal que nos convidam a descobrir. Em ambos a paisagem se interioriza e actualiza, em dois caminhos que a revisitam como género e representação, mas também como cosmogonia de uma viagem íntima que nos transmite a consciência dos seus mistérios e o dever/devir do cuidado com a sua preservação. Natureza e artifício cruzam-se nas obras destes dois artistas plenamente conscientes de que a natureza é um artifício próprio de uma condição humana que seja sua aliada. Artistas viajantes num tempo de pandemia, tão pouco propício à viagem e ao encontro, Gabriela Albergaria e Marcelo Moscheta protagonizam e reinventam esse lugar de encontro que a arte pode revelar, nos sussurros dessas Oréades que convocam, e que agora levam aos ouvidos de suas “primas’ do Cerrado brasileiro a subtileza delicada dos seus acenos cúmplices, resistentes e protetores. Será esse o caminho do encantamento que ao visitante agora se propõe.
texto para o catálogo da exposição Oréades . Embaixada de Portugal em Brasília .
2021
* Cf. Alberto Carneiro, “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica” in Alberto Carneiro – Exposição Antológica, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991, p.62.
** Cf. Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do Mundo, Companhia das Letras, São Paulo, 2019.