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O que dizer do que não foi vivido?
Cristiana Tejo

Curadora e Crítica de Arte



“ Toda a paisagem não está em parte alguma”. Fernando Pessoa

Em texto dos anos 90, Andreas Huyssen aborda o trabalho de Anselm Kiefer, proeminente artista alemão. Esse destaque conferido a um artista, em meio a textos que abordam de forma panorâmica as mudanças de paradigma na esfera da cultura no século XX, deve-se ao assunto que rodeia a produção de Kiefer: memória, nação, representação e conciliação, na Alemanha do pós-guerra. Huyssen aborda a melancolia pictórica, principalmente numa seqüência de pinturas de arquitetura fascista e observa-se diante desses quadros. Num primeiro momento, afastado da áurea ideológica por conta de certo aconchego propiciado pela pintura, o teórico chega a se encantar com aquelas estruturas. Depois, após racionalmente enquadrá-la em seu contexto histórico, vem a culpa por simplesmente deixar apagar por um instante sequer a moldura trágica que a cerca.

O final do século XX é marcado por um movimento internacional de busca de raízes, de avivamento da memória nacional ou local. O aceleramento do processo de globalização detona pelo mundo uma ânsia por marcos claros e sólidos, principalmente calcados no passado. A memória passa a embalar parte significativa da produção artística e no Brasil corresponde também a um reencontro com a história do país, após um longo período de ditadura militar. Minisséries e novelas passam a exaltar o passado, a reescrevê-lo sob um prisma dramático, ao gosto folhetinesco do brasileiro. O que faremos com o passado? Temos consciência do que aconteceu, dispomos de depoimentos, imagens dos fatos, mas ele está embalado para consumo em caixas atraentes de DVDs. Seria possível lidar com a memória sem mitificá-la, esvaziá-la, glamourizá-la?

Marcelo Moscheta (SP) em sua nova série de trabalhos detém-se em espaços de memória e leva adiante a problemática da representação. Não teríamos como comparar suas obras às de Anselm Kiefer, apesar de ambos tocarem em dois tópicos caros ao artista alemão (memória e representação). Neste emparelhamento surgem diferenças intrínsecas a cada sociedade. A tragédia do Brasil é estendida por séculos, não aciona a memória internacional, quiçá, a nacional. A tragédia alemã, marcadamente o nazismo, mobiliza o mundo inteiro. O Brasil são muitos brasis. Mas Marcelo tenta falar de si e não de todos nós. Os espaços representados são cômodos da hospedaria do imigrante, em São Paulo, lugar por onde passou seu avô, vindo da Itália. Uma melancolia do que não foi vivido por ele impregna suas obras. Como que erigindo um muro, ele constrói essas imagens por meio de fragmentos de gravuras, até chegar ao todo. Cada pedaço é acrescido cuidadosamente, como se um esforço de recordação estivesse sendo feito ou mesmo uma lenta dedução dos fatos. Para quem está no Nordeste, a chegada de levas de imigrantes no século XIX não diz muito. Não vivemos isso por aqui, são fatos relatados pelos livros de história e pelos seriados globais. Talvez não haja na contemporaneidade uma forma de lidar com a memória sem mitificá-la, esvaziá-la ou glamourizá-la?.


texto para a exposição Desabitados - Fundação Joaquim Nabuco, 2005.