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Marcelo Moscheta e o Pico do Jaraguá
Daniela Name

Jornalista, Curadora e Crítica de Arte



O lugar por onde a gente passou”. O significado de Jaraguá em guarani bem que poderia ser uma síntese da obra de Marcelo Moscheta. Morador de Campinas, ele escolheu o Pico do Jaraguá e a Serra da Cantareira como seu mapa invisível porque a visão da montanha mais alta de São Paulo sempre foi para ele um indício de que estava se aproximando da cidade. Mais ou menos neste momento, uma placa na estrada também o avisava: “Você está passando pelo Trópico de Capricórnio”.

Subtropical, trabalho que o artista apresenta na galeria da CAIXA, é uma reflexão sobre o que pode acontecer quando se transpõe a fronteira abstrata além dos trópicos. São Paulo, a cidade, está fora desta zona acalorada e úmida que tanto sintetizou, ao longo das décadas, possíveis estereótipos daquilo que pode ser o Brasil. O trabalho inventa um diário de viagem fictício, de um explorador de época e origem indeterminadas. Bandeirante e atemporal, o conjunto de fotos com frases e dados geográficos escritos a partir da impressão de papel carbono se relaciona diretamente com o processo de trabalho do artista. Moscheta tem um ateliê real, físico, e outro anotado, numa imensa coleção de caderninhos, recortes de imagens, fotos de referência.

Usar o carbono não é novidade na carreira do artista, que tira partido do material para se relacionar com o início de sua formação, como gravador, e trabalhar, de forma muito singular, com as noções de vestígio e de memória. Na série de monotipias Cabinet de bois brésilien (2008-2009), Moscheta criou fichas catalográficas de árvores brasileiras combinando uma base/paisagem feita a partir de carimbo e gravura em metal com o desenho das espécies impresso sobre este fundo com o auxílio de carbono. Em 2010, reproduziria parte de obras de Poussin e Fragonard na série Carbon copy. Mais uma vez, a gravura em metal seria responsável pelo fundo do trabalho, que reproduzia uma folha de papel milimetrado, enquanto o carbono serviria como tinta e carimbo para a imagem apropriada de clássicos da história da arte.

Catalogar é um verbo conjugado com facilidade pelo artista. Há um impulso organizador na maneira como ele entende o mundo e na forma como pinça suas referências e as processa, para então reapresentá-las de volta ao mundo, sujeitas às impressões dos olhares que se aproximam de sua obra. Esta alma de arquivista, no entanto, passa ao largo de uma frieza científica. O catálogo de Moscheta é feito de impressões, como dissemos acima, e esta palavra tem ainda um sentido figurado. Há, no processo de gravação, a marca do corpo e do trabalho físico empreendido em cada desenho. Há ainda, de forma explícita e quase amorosa, as marcas de afinidades eletivas e de um caminhar do artista sobre os arquivos que o alimentaram e o despertaram desde sempre.

Moscheta é também um carregador de pedras, no melhor dos sentidos. Ao coletar fragmentos de rocha dos lugares por onde passa, identificando-as com etiquetas científicas ou marcando-as por GPS no Google Maps, ele cria, nos museus e galerias, marcos fundadores dos lugares onde esteve. Pedra como obelisco e conquista de um novo espaço a partir da memória de outro lugar; pedra como a lembrança concreta e ancestral dos territórios por onde ele passou.

Subtropical é um diário de bordo inventado, mas bem que poderia ser também um glossário visual despretensioso dos caminhos percorridos pela obra de Moscheta. Além das pedras, das anotações/gravuras em carbono, do viés expedicionário e das páginas de arquivos imaginários, com seus carimbos e etiquetas de identificação, a instalação feita para Mapas invisíveis materializa de forma muito potente uma situação recorrente no percurso do artista. Na galeria, as pedras trazidas do Jaraguá são cortadas por uma linha de luz vermelha, simulacro do Trópico de Capricórnio.

Esta reta luminosa, imaterial, lembra a virtualidade dos trópicos e do Equador, linhas inventadas pelos geógrafos para medir, dividir e orientar nossa relação com o mundo. Assim é o trabalho de Moscheta. Muitas de suas obras, como Maré (2009), são fruto de uma experiência real com determinada paisagem. Do mesmo modo que foi ao Jaraguá, também visita praias e pólos gelados para trazer de lá não apenas rochas, mas projetos.

Ao marcar os pontos em que recolhe pedras na superfície do planeta ou simular a alteração das marés com uma engenhoca eletrônica, ele está sempre criando formas de medir o mundo, para melhor compreendê-lo. Este entendimento é caminhante: seus percursos vão marcando a superfície dos territórios. As linhas dos lugares por onde ele passou, tão etéreas quanto a luz vermelha de Subtropical, são o seu mapa e sua bússola. São um desenho no mundo, como o Trópico e Capricórnio.


texto para o catálogo da exposição Mapas Invisíveis, 2011.