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Lições da pedra
Guilherme Dable

Artista



“Toda pedra é uma pequena montanha”.
Esta frase, pintada sobre um muro em um povoado em Portugal, disparou uma faísca em Marcelo Moscheta, cujos desdobramentos estão aqui neste espaço. O artista parte da pedra, do carvão e do papel - materiais ancestrais e carregados de potência - para realizar Transumantes, obra que ocupa o hall do teatro do Sesc Pompeia.

Há pedra: pedaços desfigurados de montanhas e deslocados de seu espaço original. A memória de tempo geológico está impressa em cada pedaço, não importando o uso que lhe foi dado.

Há papel: criação destinada a guardar e transmitir saberes. Responsável por ser a extensão das memórias, fantasias e frivolidades do homem para além da tradição oral. Memórias que antes eram transmitidas ao vento acham pouso na folha e ganham distâncias antes impossíveis.

Há carvão: proveniente da queima da madeira, que há milhares de anos é usado para fixar o assombro humano, das paredes de Chauvet ao fascínio perceptivo que qualquer objeto oferece ao olhar de um desenhista atento.

Moscheta dá à pedra saberes de deslocamento através de milhares de folhas de papel empilhadas, stop-motion de um tempo que não somos autorizados a vivenciar. O deslocamento e a transformação da pedra nos ultrapassam em milhares de anos, ao mesmo tempo que nos oferecem, estáticas e impessoais, a possibilidade de ser maleada, partida e reconfigurada, sem perder sua origem. Por entender que desenho é trajetória, Moscheta já viajou o mundo deslocando pedras de seus locais, grafando com GPS seus exatos pontos de origem, especulando sobre a possibilidade de envolver o planeta em um desenho desses deslocamentos, pontos no globo unidos pela obstinação do artista. O trabalho que nos rodeia, porém, parece inverter tal lógica: as pedras já foram deslocadas de sua função de montanha, de seus lugares originais no mundo. Para além disso, há uma inversão formal nos desenhos que integram essa instalação. Conhecido por trabalhos em grafite sobre PVC preto, Moscheta nos apresenta aqui executados a carvão sobre papel. No primeiro caso, o suporte escuro e opaco fazia o grafite reluzir, dando às imagens um aspecto um tanto fantasmagórico: o pouco contraste e o alto brilho davam a elas o aspecto de uma aparição, de imagem sem corpo. Aqui, entre eu e você, temos a alvura do papel em duro contraste com a opacidade do carvão - ambos, grafite e carvão, compostos do mesmo carbono. Moscheta parece querer nos apontar para o aqui e o agora, com tais inversões.

No desenho, a pedra é ícone. Estática. Sua aparência é depositada no suporte, golpe a golpe, na tentativa do artista de fixar algo que se dá num eterno pendular entre a percepção e a representação. A qualidade de sutura do gesto do desenho busca, como pelas mãos do cirurgião, unir duas partes vivas, mantê-las assim. Não há espaço para soberba no ato do desenho: somente a humildade e o respeito adentram seus domínios. Das práticas de ateliê, talvez o desenho seja a que tenha a conexão mais imediata e profunda com o não dito, com o atávico. Talvez o desenho seja onde nós, artistas, conseguimos expurgar o que não encontramos como nominar.

A montanha absorveu os golpes de quem a transformou nos pedaços aqui expostos. O preto opaco do carvão absorve a luz. O branco imaculado do papel absorveu os golpes do artista. Enquanto os escombros do Museu Nacional ainda ardiam em brasas, Moscheta desenhava a carvão em seu ateliê. Se o desenho é uma espécie de luto, ele é, ao mesmo tempo, mecanismo fundamental de reconstrução e reinvenção.



texto para a exposição Transumantes, realizada no SESC Pompéia em 2018.