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A pele dos dias - crônicas de afetos e resistências
Adriana Almada


Curadora e Critica de arte



Marcelo Moscheta é um artista de grandes deslocamentos. Seu trabalho surgiu, em muitos casos, de longas viagens,e viagens a confins, como o Ártico, o deserto do Atacama, ou ao longo das margens do rio Tietê (São Paulo) em sua totalidade, ou parcialmente na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Seu trabalho quase sempre é apresentado como exploração e vinculado à noções de território e de fronteira.

No Paraguai, Marcelo Moscheta residiu a comunidade Aché de Puerto Barra, Alto Paraná, a cerca de 400 quilômetros de Assunção*. Os Aché são um povo originário da região leste que está distribuído em várias províncias**. Até os anos 1970 do século passado, havia grupos que viviam na selva sem contato com mestiços ou brancos. A comunidade de Puerto Barra foi criada em 1976 com os Aché que haviam deixado as montanhas e, eventualmente, recebeu alguns daqueles que sobreviveram às condições subumanas da Colônia Nacional Guayakí***. Já havia fortes denúncias, no país e no exterior, sobre a política de extermínio que o povo Aché foi submetido em diferentes lugares sob a ditadura de Stroessner. Os Aché foram retirados do monte em verdadeiras “caçadas humanas” e seus filhos capturados e vendidos para uso em servidão. Após o contato, eles morreram em grande número devido a maus  tratos ou doenças. Esses eventos são conhecidos como “o genocídio dos Aché” e foram denunciados pelos antropólogos Mark Münzel e Bartomeu Melià, entre outros4. Pierre Clastres, um antropólogo francês que vivia entre os Aché Wa em Arroyo Morotí, Caazapá, destacou a resiliência e a cortesia deste povoado.

Em Puerto Barra, Marcelo Moscheta encontrou uma comunidade em transformação, que cuida de um território remanescente de mata atlântica cercado por um mar de soja. Empurrados pelas circunstâncias, em uma situação de fronteira, os Aché - caçadores e coletores especializados - tornaram-se agricultores e criadores de animais em um processo de adaptação que não negligencia a preservação da memória e da identidade cultural.

Diferentemente das viagens anteriores, nas quais o artista permanecia solitário em meio a paisagem, dessa vez o convívio prevaleceu. Ele se embranhou na floresta e no rio acompanhado pelos Aché, e com eles visitiou o local onde foram enterrados seus ancestrais.

Nesta exposição, Marcelo Moscheta  apresenta “evidências” de sua breve estadia em Puerto Barra. Os objetos foram alterados pela mudança de contexto e pela intervenção que o artista operou sobre eles e se tornaram testes poéticos que testemunham sua passagem pela comunidade e constituem uma reflexão pessoal sobre a experiência.

Na sala, ele arrumou as pedras que foram extraídas do leito do rio Ñacunday. Essas pedras, caprichosamente moldadas ela água, corroídas, são um símbolo de força e flexibilidade. Moscheta os expõe em estado natural sobre “pedestais” cujas formas se referem ao agronegócio. Pedras diferentes, também coletadas nas margens do rio, foram iluminadas com folhas de ouro e posicionadas em uma determinada direção.

A prática de mover elementos naturais de um lugar para outro, dando-lhes novos significados, não é nova em Moscheta. Ele a exerceu em várias ocasiões gerando um tráfego que excede ou evita limites, permitindo que tais elementos expandam sua energia e multiplique seus sentidos. Embora essa “transferência” também possa ser lida no código de extração forçada, como foi o caso dos Aché.

Alguns desenhos em grafite sobre PVC reproduzem achados e sugerem uma aura semelhante a um museu de ciências (com o objetivo de apreender o vivo, medi-lo e classificá-lo). Um aceno, talvez, aos estudos que no final do século XIX e no início do século XX objetificaram os corpos dos Aché com o intuito de obter dados antropométricos.

Com uma antiga cerca de arame e madeira composta por aproximadamente vinte pontas de flechas feitas por Alejo Baipuku (Jaguar), Marcelo Moscheta recria simbolicamente a topografia de um território violentamente demarcado, aludindo ao estabelecimento da propriedade privada onde antes prevalecia uma liberdade restringida apenas pelos ciclos da vida.

As grandes fotografias sobre as quais o artista intervém com a terra vermelha, merecem um parágrafo especial. Com um gesto seguro, ele interrompe a paisagem, não para refutá-la, mas para afirmar sua própria consistência, trazendo à cena um tema sensível: a reivindicação do território ancestral do povo Aché. A terra é uma matéria viva que perturba a imagem com urgência.

O único vídeo da exposição retrata um momento especial da sua estadia. Esta imagem em alta resolução que se move muito lentamente, dialoga com os filmes gravados em super 8, que também integram a exposição, filmados pelo fotógrafo e pesquisador Bjarne Fostervold que conviveu com os Aché de Puerto  Barra desde inicios de los años 70. Trata- se de um registro documental de duas horas de duração, sem som, captado entre os anos de 1980 e 1983, que revela cenas das rotinas diárias da comunidade, a caça, a pesca, o cultivo, o bosque, o rio, jogos tradicionais, festas e rituais, bem como aspectos de uma realidade à qual os Aché devem se acostumar em breve.

Moscheta e Fostervold abordam os Aché, cada um a partir de sua própria história: um por meio do estranhamento e da empatia, outro através da familiaridade. A exposição é um campo de forças em tensão em que diferentes narrativas se cruzam, um cenário de temporalidades aleatórias que nos permite vislumbrar, talvez, sinais de um mundo a que ambos se aproximam com delicadeza e respeito.


texto da exposição La piel de los días, de Marcelo Moscheta e Bjarne Fostervold no Centro Cultural Juan de Salazar, Assunção, Paraguai em 2019.




*Actualmente viven allí 68 familias, totalizando unas 280 personas.

**Los Aché son una subfamilia del grupo lingüístico Tupí Guaraní y están asentados en los departamentos de Alto Paraná, Caazapá, Caaguazú y Canindeyú.

***Hasta los años 80 se usaba la denominación Guayakí, que algunos traducen como “ratas del monte” o “ratas feroces”. Esta era un nombre peyorativo. Aché, como ellos se autodenominan, significa “persona”.