Errante
Gabriel ZimbardiGaleria Vermelho
Marcelo Moscheta é um artista caminhante. O artista que incorpora o ato de caminhar em sua prática sempre esteve presente na costura da história da arte. Para além do artista interessado em explorar, mapear, observar e interagir com o ambiente, o deslocamento enquanto parte do fazer ocupa práticas artísticas desde que os artistas viajantes integraram as expedições artísticas e científicas nas Américas a partir de sua invasão no século XVI. Ou daqueles que optaram, pela primeira vez, por sair dos ateliês para pintar ao ar livre. Depois que os Situacionistas, nos anos 1960, assumem a tarefa de superar a arte enquanto especialidade em detrimento de entendê-la como parte da vida cotidiana, o caminhar é assumido como prática da deriva – um passeio sem destino. O artista que opta pela ação de caminhar, então, subverte a ordem e estabelece o espaço público como lugar de criação e subjetividade. A caminhada é performativa e investigativa e permite novas leituras sobre o que é espaço e lugar a partir de “torções” conceituais. Artistas como Richard Long, Hamish Fulton e Francis Alÿs criaram obras que transformaram paisagens (urbanas ou naturais) ou a maneira de observá-las a partir de suas caminhadas.
Representar o movimento se torna um caminho, e Marcelo Moscheta é um artista debruçado neste caminho. Em 2007, em Circulo polar ártico, Moscheta criou uma instalação que procurava deslocar o espectador ao extremo norte do globo com manipulações de imagens digitais que se assemelhavam ao Ártico, mas que não passavam de fotografias de cubos de gelo feitas sobre a pia de seu ateliê. As imagens eram organizadas em círculos incompletos, exigindo de quem vê a finalização das imagens pela imaginação.
Em 2011, Moscheta esteve em residência no Alto Ártico, em Spitsbergen. Sua obra, então, se adensa nas articulações pautadas pelo empírico. Como cadernos de viagens ou como documentos poéticos, sua produção busca a tradução da vivência no Ártico. Aí se localiza a série Fotocromáticos (2012), onde filmes de fotolito PB são justapostos a tabelas de códigos Pantone®, sugerindo que o espectador preencha a paisagem com as cores oferecidas. Além da transposição do estar no território para trabalhos que viajam para outras localidades, o estar no Ártico inspira obras que se relacionam com a tradição da Land Art e que se baseiam em intervenções sobre a paisagem. Em A Line in the Arctic (2012) uma linha feita de fita adesiva é esticada no chão na tentativa de seguir o paralelo e o meridiano exato para o norte, o sul, o leste e o oeste. Por conta da interferência do polo na leitura de aparelhos de GPS, dúvidas sobre a precisão da ação são levantadas. O trabalho pondera sobre as tentativas do homem de medir, delimitar e enquadrar o mundo e as falhas inevitáveis de medir imensurável. As imagens que registam a ação são exibidas em molduras de Isopor®, fazendo referência às caixas térmicas usadas no transporte de elementos que demandam a manutenção de certa temperatura. Há aí o deslocamento do sujeito no território e a sinalização do deslocamento da experiência.
Experimentações com diversas ideias de deslocamento também permearam expedições de Moscheta à Bretanha (2007), ao Atacama (2011), à região fronteiriça do Pampa (2009-2010), e a percorrer todos os 1100 km de extensão do Rio Tietê (2015) – entre muitas outras.
Em 2021, Marcelo Moscheta mudou-se para Portugal para o desenvolvimento de sua pesquisa de doutorado. O estar imigrante estabelece outra forma de deslocamento baseada no constante estado de trânsito e desterro. A partir desse novo deslocamento, Moscheta produziu uma série de novos trabalhos baseados na busca do reconhecimento dessa nova terra, incluindo sua primeira intervenção permanente sobre uma paisagem.
Em julho de 2023, a instalação O invisível, do Projeto Conic Infinite passou a integrar a paisagem do Grande Vale do Côa, em Portugal. Na intervenção, Moscheta utiliza madeiras, cortiças e rochas locais, planejando sua decomposição natural, que permitirá que seu processo evolutivo as devolva à paisagem sem impacto ambiental. O trabalho, organizado como dois grandes cones que têm suas aberturas maiores espelhadas, além de criar recortes visuais na paisagem do alto de uma colina, também permite diferentes experiências térmicas e sonoras por conta das características naturais da cortiça. A instalação foi desenvolvida a partir de uma residência artística em parceria com o Município de Sabugai, com a FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia e com a Amorim Cork Insulation.
Esse conjunto de vivências e experimentações é o que informa sua nova exposição na Vermelho. Precisamente intitulada Errante, a exposição lida com deslocamentos espaciais e temporais.
Portugal tem alguns dos monumentos megalíticos mais antigos da Europa. A origem da maior parte deles está localizada no período Calcolítico, de 3300 a 1200 a.C.. Interessado por rochas enquanto representações poéticas de uma história permanente, Moscheta é fascinado por esse conjunto de monumentos milenares feitos em pedra. Movido por esse fascínio, ele busca rebates a experiência de presenciar um desses monumentos, o Dólmen da Arca, localizado no município de Viseu. Os dólmens são estruturas compostas de grandes pedras verticais sobrepostas por uma pedra horizontal que eram geralmente usadas como sepulcro. Por se conformarem como uma espécie de abrigo, suas estruturas preveem o corpo enquanto escala. Para transportar a presença do Dólmen, Moscheta decidiu fazer uma frottage (ou decalque) do monumento. Para isso seria necessário encontrar um material macio e resistente, já que papeis não aguentariam a agressividade do atrito com o granito do Dólmen.
Foi assim que outro de seus fascínios foi acessado: o Tyvek®, que é um material altamente tecnológico, leve e durável. O material é um tecido não tecido respirável e resistente à água, abrasão, penetração bacteriana e ao envelhecimento. É produzido pela DuPont, a mesma empresa que colaborou com a NASA para desenvolver materiais que permitiram que o homem pousasse na lua, incluindo os materiais dos trajes dos astronautas.
O Tyvek permitiria a fricção do giz com o granito, garantindo a integridade do desenho. Mais do que isso, o Tyvek permitiria o deslocamento de algo tão imóvel e fixo quanto a estrutura de 5000 anos do Dólmen da Arca a partir de seu índice. Moscheta começou, então, as negociações com diferentes fóruns que envolvem Portugal, Estados Unidos, Brasil, Espanha e Uzbequistão. As permissões e documentações necessárias para a realização da obra atravessaram um mês de trocas com 7 arqueólogos e representantes de diferentes departamentos de arquitetura e arqueologia de Portugal.
Todas as etapas garantiram a execução da obra e a preservação da integridade do monumento milenar. Moscheta teve, então, três dias para executar a frottage com a ajuda de um assistente.
Finalmente, com o índice de cada pedra que compõe o Dólmen da Arca registrado em rolos de Tyvek, Moscheta pôde consolidar a obra 1:1 (Dólmen), que ocupa a sala principal de sua exposição. A instalação planifica o Dólmen da Anta, permitindo que o público se desloque por seu referente. A obra se da como ícone e índice, como mapa e pegada. A obra se baseia na semelhança e na relação real com o original.
Em suas múltiplas expedições, Moscheta coleciona rochas, fósseis, documentos e uma miríade de elementos. É parte desse material que forma a série Autopoiesis (2024) onde elementos de diferentes caminhadas são articulados numa lógica de produção fundamentada em características do conceitualismo, como a intervenção e combinação de elementos, a articulação de textos enquanto imagem, o uso da documentação e a contextualização de componentes. Em escala reduzida, essas obras aproximam diferentes experiências como um glossário de possibilidades que é tensionado em novas combinações. Na biologia e na filosofia, o termo Autopoiesis descreve sistemas que são capazes de se criar e se manter a partir de si mesmos.
Em Substância (2024), Moscheta insere uma rocha de sal em uma fotografia feita em uma de suas expedições a uma caverna de sal na Colômbia. A obra, ao mesmo tempo, documenta e transporta seu estar na caverna.
Na série Parábola (2024), Moscheta propõe outro deslocamento temporal a partir de uma fotografia feita por seu pai durante uma coleta no Horto Florestal de Maringá (Paraná) em 1981. Botânico de profissão, seu pai registrou um colega, acompanhado de seu filho, com uma vara de poda. O trabalho opera através da repetição de elementos ligados à logica (o grid da lousa de ardosia, o grid do linho) para investigar o momento de aprendizado lúdico registrado na fotografia e elaborar composições onde ensinamento e liberdade se aproximam. Na obra, a vivência e a oralidade se sobrepõe a formalidade da lousa representada pela pedra de ardosia.
Questões sobre a natureza do tempo também pautam Sedimentar (2024). A série de pinturas de Moscheta é feita a partir da sedimentação de calcário proveniente de cocolitos. Essas massas de carbonato de cálcio são produzidas por algas como uma forma de proteção. Quando a alga morre, os cocolitos são liberados no ambiente marinho. Moscheta produz aguadas com o pó de calcário dos cocolitos para pintar superfícies preparadas com gesso acrílico. O artista movimenta essa tinta pelo campo até que ela se sedimente sobre o suporte. Moscheta devolve a rocha sedimentar dos cocolitos à água e devolve a elasticidade das algas ao material. A imagem das pinturas se assemelha a ossadas turvas, propondo um caminho múltiplo entre matérias. O jogo temporal e material de Sedimentar levanta questões acerca da natureza da criação e da destruição na arte.
As várias caminhadas e obras de Marcelo Moscheta se apresentam como um diário de bordo de suas jornadas, onde questões que tocam a estética, ética e história da arte são rebatidas na história dos deslocamentos e assentamentos do homem no mundo; nas suas formas de estar e pensar os espaços, e nas formas de dominação que exerce sobre a paisagem.
A mobilidade do homem entre espaços é, então, celebrada na obra que abre a exposição. Jeremias (2024) traz escrito em cacos de cerâmicas de várias proveniências a profecia presente na Bíblia, no Livro de Jeremias, Capítulo 35:7: “Habitais em tendas para que possais viver muito na terra em que sois estrangeiro”. Como uma escavação arqueológica, a obra propõe a ruína da condição da edificação e do acumulo material em detrimento de um constante estado de deslocamento.
texto para a exposição Errante, realizada na Galeria Vermelho, setembro/outubro 2024