Desenho da deriva
Daniela Name
Jornalista, Curadora e Crítica de Arte “O mar é o meu substituto para a pistola e a bala”, anuncia Ismael, narrador de Moby Dick, logo nas primeiras linhas do livro. Antecipa obsessões: a dele próprio e a que consome o Capitão Ahab, comandante do navio Pequod, que empurra toda a tripulação na busca incansável por certa baleia branca. Norte é uma exposição sobre uma viagem – para o Ártico e para a retomada das rotas dos antigos expedicionários escandinavos que atingiram o Círculo Polar – e também sobre uma insistente direção: desde o início de sua história como artista, Marcelo Moscheta persegue os embates com a paisagem como se ela fosse a sua Moby Dick.
É essa vontade de se relacionar com a paisagem, invenção tão humana que a arte ajudou a fundamentar, que o tem empurrado rumo a territórios desconhecidos. Já foi ao gelo do Polo Norte e ao Deserto do Atacama; coletou rochas na fronteira do Brasil com o Uruguai; e se relacionou com o Pico do Jaraguá, parte do território de São Paulo que é cortado pelo Trópico de Capricórnio. Expedicionário e desbravador, Moscheta transformou Norte em um espelho de seus diários de bordo, das anotações e catalogações que fez durante as três semanas em que se esteve viajando pelos mares gelados, visitando diversos pontos do arquipélago de Svalbard.
A cidade de Pyramiden é boa bússola para este Norte. Ao visitar essa antiga mina soviética que virou cidade abandonada depois do esgotamento da atividade econômica, Moscheta reencontrou memórias de outros tempos recobertas pela neve. O povoado, presente no trabalho Atlântida, ilumina uma das características de sua obra, que nesta mostra do Paço Imperial se torna ainda mais clara: ao percorrer caminhos que antes pertenceram a outras pessoas, devassar fronteiras e enfrentar o território desconhecido, o artista plasma seu próprio olhar depois de mergulhar no olhar do outro.
A relação com o sublime e com a herança da paisagem romântica, sobretudo com a obra do alemão Caspar Friedrich, aparece fortíssima em todos os resultados desta expedição-exposição. É possível ainda reconhecer Giorgione e Bruegel como possíveis companheiros de viagem, ou navegar por mares mais contemporâneos, onde o navio esbarra nos destroços da História e nos espectros mitológicos de Anselm Kiefer. Em Atlântida, não é por acaso que um reino perdido, perseguido por visionários e sonhadores, serve de mote e de motor para que Moscheta converse com os fantasmas do Ártico. Eles mandam notícias de um tempo que já foi, mas que ainda pulsa, latente. São como náufragos perdidos no oceano e, vez ou outra, mandam sinais, mensagens na garrafa.
As relações com a pintura permeiam toda a trilha de Norte, mas esta é também uma exposição sobre o desenho. Moscheta está sempre desenhando: é assim quando assinala os pontos que percorre em um mapa, usando tecnologia de ponta, alfinetes ou recortes de jornal; ou quando recupera, em Driftwood, o percurso que restos de árvore da Sibéria fazem até o Círculo Polar através das correntes marítimas. O impulso viajante vem transformando sua obra em um conjunto de linhas que ele sobrepõe aos mapas. É o tal caminho percorrido a partir das estradas e rotas que outros abriram, modificando-as com trilhas alternativas às vias principais. Um desenho virtual e cíclico, que o artista tem traçado sobre a cartografia do mundo.
O desenho é base para A line in the Arctic, trabalho que aponta ainda para o duelo incontornável entre paisagem – aquilo que apreendemos do natural – e a própria natureza. Ao tentar traçar com fita adesiva amarela a linha de paralelos e meridianos nas direções dos quatro pontos cardeais, Moscheta viu seu GPS de última geração enlouquecer, tornando-se impreciso na aferição das distâncias. O artista então se curvou a essa impossibilidade de controle. E isto é o que há de mais forte e mais bonito em Norte: o teste de até onde vão os limites para a interpelação da natureza, seguido do momento em que é preciso dar lugar apenas ao gelo e ao silêncio. Avançar é se afogar na miragem, já que Moby Dick, a baleia-meta, leva para o fundo do mar quem a atinge com o arpão.
texto para a exposição Norte, realizada no Paço Imperial do Rio de Janeiro em 2012.