Conversa com Gabriela Albergaria, Marcelo Moscheta e Margarida Lagarto
Filipa Oliveira
Filipa: Nas vossas obras, sinto uma grande intimidade com a natureza. Uma proximidade que se revela de forma diferente nos vossos trabalhos individuais. Ainda assim, o ponto de partida — seja devido às vossas origens, nos casos da Margarida e da Gabriela, ou a uma ligação através da ciência e da botânica, no caso do Marcelo — parece ser uma relação sempre presente e próxima com a natureza, uma relação que abre a possibilidade de um lugar de fala muito particular para cada um. Gostava de que falassem dessa relação de intimidade com o mundo natural.
Marcelo: Essa minha relação com os espaços abertos e naturais tem que ver com a questão da escala. É uma necessidade de mensuração do meu tamanho com o tamanho do mundo, uma ideia que me acompanha desde a minha tese de mestrado, na qual usei um conto de Italo Calvino, «Do Opaco». No final desse conto, ele apresenta uma proposta mais científica de medir o espaço do eu e até a própria sombra a partir de descrições geométricas. E eu achei incrível, isso de conseguires definir o teu espaço, por exemplo o espaço que o teu corpo reverbera dentro de uma sala com uma descrição muito precisa, quase científica, e ao mesmo tempo muito poética. Ele termina o conto formulando o lugar geométrico do eu. É muito bonita essa construção, de tentar forçar um visualizar da minha existência a partir de uma outra objetividade, não só da minha subjetividade. Gosto dessa sobreposição de camadas, de formas mais científicas» de abordar o espaço e outras mais subjetivas, poéticas e sensíveis de estar nesse mesmo espaço. Desde então, acho que minhas obras começaram a ter essa sobreposição de códigos, que são usados quase como uma autorização, um carimbo. É uma visão mais apurada,como se a ciência fosse também mais apurada, mais racional e precisa do que a própria experiência.
Margarida: Para mim, é uma relação perfeitamente espontânea, uma experiência que vem de tudo o que foi a minha infância. Eu nasci numa terra muito pequenina, muito, muito dentro do campo, numa zona até bastante despovoada. Era esse o meu mundo: o mundo vegetal, o mundo dos bichos, mas sobretudo o vegetal. O meu trabalho foi sendo feito dentro da paisagem: ou ela é explícita, ou são-no os seus elementos vegetais, as águas, tudo o que a envolve. Gosto imenso de ervas. Sempre gostei daquilo que as pessoas chamam de ervas daninhas. Sou uma recoletora de ervas gigantes, que levo, enroladas ou esticadas, para o meu ateliê. Por exemplo, apanhei uma erva linda que se chama Polygonum aviculare, que tem um diâmetro de um metro e vinte, cresce paralela ao chão e tem a forma arredondada. Parece uma renda, é absolutamente deslumbrante. Recolhi várias, as primeiras enrolei e uma outra estiquei na parede do ateliê, onde vou fazendo aguarelas e desenhos. Normalmente, não trabalho com flores de jardim ou de vaso, mas, sim, com ervas e plantas mais espontâneas. Na realidade, elas também nos indicam coisas boas e más. Também são muito bonitas. Não é uma coisa intelectual, este é o meu universo natural. Gostava de que as pessoas dessem mais atenção a este mundo vegetal, sem desprezar estas ervas que se dizem daninhas.
Gabriela: Eu também nasci no campo, pelo que tenho muitas semelhanças com a Margarida, mas, ao contrário dela, não usei a natureza como tema inicial do meu trabalho. Ela surge muito mais tarde, quando começo a ter mais curiosidade sobre questões relacionadas com paisagem no sentido tradicional e a questionar de que forma os jardins, como paisagem construída, são uma substituição da natureza. É aí que começo a trabalhar com fotografia e a fazer maquetas de jardins. Nessa altura, a questão dos jardins começa a ser muito importante para mim: quase um estudo cultural da relação entre humano e natureza. Como é que manipulamos a natureza? Como é que a natureza responde e nos manipula? Depois, com os jardins, começo a trabalhar de forma mais site specific, com ações diretas na natureza. Aí, já sinto mais afinidade com o Marcelo. Quando passeio na natureza, estou constantemente a medir a minha relação com o lugar e a questionar-me: «onde estou?», «que terra é esta?», «como é que me meço?», «como me relaciono com este sítio?». Interessam-me os temas da agricultura, da alimentação, da manipulação da natureza. É frequente usar conhecimentos das ciências da agricultura para encontrar soluções para resolver as minhas peças. São questões que se relacionam com a natureza, mas já muito distantes da ideia de paisagem.São questões de responsabilidade pessoal. Nos meus últimos trabalhos, estas perguntas são também propostas.
Filipa: Poderiam falar do vosso processo de trabalho? As vossas práticas parecem partir de um estar na natureza. A ação de caminhar parece ser importante para os três: ir ao lugar, medir o corpo no espaço,recolher terras, ver sombras.
Marcelo: Sinto que tanto eu como a Gabriela (não conheço tão bem o trabalho da Margarida) temos uma relação muito próxima com os naturalistas e partilhamos daquela ideia de que é preciso ir até ao lugar e experimentá-lo, de que é a partir desse primeiro contacto que tudo nasce, como se esse fosse o combustível de toda a criação. Hoje em dia, não existe mais um lugar que não esteja traçado dentro dos códigos da latitude e longitude. É necessário voltar a essas mesmas práticas, a essa consciência de que cada vez que eu saio, cada caminhada que faço, cada vez que eu ando a pé, descalço, que coloco o pé dentro de um riacho, que me sento para observar uma árvore, ver o vento balançar, criando sombras, tudo é uma descoberta profunda e necessária. A vida na cidade, essa vida «confortável», leva-nos para o lado totalmente oposto. Não é à toa que muitos artistas se têm voltado para essa urgência de encontrar elos que foram perdidos nesse nosso progresso, nessa nossa necessidade de conforto e desenvolvimento. Essa abordagem, este desejo de entender a natureza, tem um eco nesses naturalistas, o que eu acho muito bonito. É uma ideia romântica que nos impulsiona.
Gabriela: O romântico não tem problema nenhum, não tem nada negativo. Precisamos de uma poética, ou mesmo de uma transcendência. Vem dessa necessidade que as pessoas têm de qualquer outra coisa que as preencha.
Margarida: As pessoas estão esvaziadas, não é?
Gabriela: Exatamente, é um problema enorme que temos. Questões que não são só políticas, mas são sobretudo sociais.19 Eu acho que é por causa da perda da relação com a natureza. Temos uma nova necessidade de natureza, agora já não romântica, como no século XIX.
Marcelo: Pensando em alguém que acredito que seja uma referência para todos nós, o Henry David Thoreau viveu dois anos numa cabana isolada no meio do mato e é a mesma pessoa que escreveu o livro A Desobediência Civil. Era um statement.
Margarida: Já tinha consciência do que é que o mundo industrial iria fazer ao mundo. William Wordsworth, também consciente dos problemas da industrialização, aconselhava as pessoas a ir para a beira dos rios, tocar nas pedras, envolver-se com a natureza.
Gabriela: Para mim, o andar na natureza tem que ver com a criação dessa relação especial com um espaço: aprender aquele espaço e criar o desejo de fazer. É muito terapêutico. É sobretudo estar atento: à luz, às formas, às situações. São pontos de partida para o trabalho, estímulos, porque depois sou uma artista de ateliê. O estar na natureza é um processo de aprendizagem que entretanto levo para o ateliê. É uma forma de começar a pensar. Depois, junto histórias, percebo particularidades, coisas esquisitas, e misturo tudo no ateliê.
Margarida: É também o que se passa comigo: a procura desse bem-estar num ambiente onde isso era extremamente importante quando era criança. Era facílimo para mim sair da parte urbana e enfiar-me no meio do campo. Não era suposto, naquele tempo, uma menina aventurar-se no campo sozinha, não era assim que se brincava, mas eu gostava de me deitar na terra, em cima do musgo. Gostava do cheiro a lodo. Com a minha dimensão física de menina com cinco anos, o ato de me deitar no chão, em cima do musgo ou no meio das ervas, e ter aquela cúpula toda por cima, como uma perspetiva em olho de peixe, também me dava uma noção de dimensão. Isso é algo que continua a fascinar-me, além desta coisa primordial que é o meu bem-estar espiritual. Essa pequenez que eu sentia quando me deitava na terra é algo que ainda hoje sinto. Nós somos uma parte microscópica deste universo. É também por isso que gosto tanto das ervas, porque elas são desprezadas e são importantíssimas na nossa vida, como tudo o que existe à superfície da Terra. Eu sinto-me mais perto das ervas do que das coisas majestosas: coisinhas pequeninas que me inspiram uma ideia de humildade perante este universo tão gigante e absolutamente avassalador.
Filipa: Vocês utilizam frequentemente materiais que retiram diretamente da natureza. Nesta exposição, temos o caso de Erva Seca, da Margarida, e Toda pedra é uma pequena montanha, do Marcelo,mas também as terras e as sementes que a Gabriela usa. No vosso fazer, na vossa ética de trabalho, eu vejo não tanto um usar a natureza, mas quase que uma parceria: um «fazer com».
Margarida: Uns amigos deram-me um bocadinho de uma erva-planta, a Tradescantia pallida purpurea, que pus num vaso em minha casa. Foi há quase quarenta anos, mas fui sempre propagando a planta. Já não tenho a original, mas ela continua comigo e tem uma particularidade que me impressiona muito, que é ser tão frágil como resiliente. Penso que é originária do México e depois veio para a Europa, mas já encontrei em Macau, por exemplo. Não sei se é ou se foi uma erva espontânea.
Gabriela: Conheces o livro do Gilles Clément, Jardim Planetário? Aí, ele escreve: «Muito antes do nascimento do homem, as espécies animais e vegetais viajavam incessantemente: sementes transportadas pelo vento, pelos animais e pelas correntes marítimas. Não se conhece a origem geográfica da maior semente do mundo, o coco, que viaja na faixa tropical do planeta, arrastado pelos ciclones. Enquanto o coco flutua, as samaras de bordo e as sementes de dente-de-leão voam. Muitas sementes passam pelo trato digestivo das aves, sendo rejeitadas assim que a polpa do fruto é digerida — como as cerejas.»* O que ele diz é que podemos questionar a ideia de espontaneidade das plantas.
Margarida: É esta coisa da disseminação, da reprodução que eu faço e que a natureza faz por si própria. O comportamento desta planta é um pouco como muitas ervas: ela é muito resistente, e ao mesmo tempo encantadora e linda. É como os pavões, com aquela cauda lindíssima; ela também pode ser muito vistosa. Se a encontrássemos num campo, durante uma caminhada, não poderíamos deixar de reparar nela. No ateliê, disseco-a, faço aguarelas, faço bordados. Uso os panos que herdei da família.
Marcelo: É engraçado… Nos últimos dias, também fui questionado a respeito disso, porque essas pessoas que me interpelaram não viam a minha intervenção nas pedras, mas simplesmente o elemento deslocado, saído da natureza para a galeria. A minha relação com a natureza é uma relação de respeito e reverência. A pedra é tão bem resolvida em termos simbólicos, poéticos e formais que eu não me sinto autorizado a furá-la, esculpi-la ou a talhá-la. Costumo dizer que a pedra é o ADN da paisagem. Um dia, conversando com um geólogo, confirmei esta minha intuição. Uma pedra é um fragmento do todo. Ela contém em si todas as informações sobre o espaço onde foi formada, onde está colocada, etc. Nunca consegui pensar numa relação que pudesse acrescentar um significado. Não quero ser mais um dominador ou um colonizador com uma atitude predatória, então procuro aproximar-me e assemelhar-me desse elemento que estou a trabalhar. O material com que trabalhamos, plantas, pedras, nuvens ou terras, é muito generoso conosco.
É preciso uma intimidade muito grande, uma convivência, para que essa relação exista. Eu escolhi estas pedras, transportei-as, senti o seu peso. Lavei-as, tirei a sujidade, procurei a posição que deviam assumir, experimentando, olhando-as de perto, conhecendo-as. Por vezes, não foi possível trabalhar num dado momento, e foi necessário voltar no dia seguinte para as olhar de forma diferente. Estabelecer esse tempo mais demorado, mais alongado com a nossa matéria de trabalho é profundamente respeitoso. Sempre vi a criação artística como relações de afeto que vamos tecendo através de relações de intimidade. Eu penso na minha ação enquanto artista como um gesto de compreensão e comunhão. A comunhão com o que faço, a comunhão com a matéria e a comunhão com os outros. Uma exposição é uma partilha. A pedra é, de certa forma, o meu espelho. É o meu duplo.
Gabriela: Acho interessante que assumas isso como uma tomada de posição. Eu também sinto um pouco isso. No meu caso, há um percurso que começa por usar ramos de árvore para construir uma escultura que se assemelhe a uma árvore, depois extrapulo para a questão da construção e da terra como matéria escultural, a terra como cor para desenhos, para bases de desenhos. Hoje em dia, para mim é importante que todas as matérias que escolho para o meu trabalho tenham um fim, que se desfaçam na obra. Então, desde a fase inicial, na qual estou à procura, a passear nos locais, até ao momento em que me confronto com o que recolho e a forma como o transformo dentro do ateliê, é essencial que em cada peça esteja presente a questão do ciclo completo da natureza. A única coisa à qual não consigo dar a volta é a questão da embalagem de plástico; só consigo embalar em plástico de bolhas. Sinto muita afinidade com os vossos processos, são todos muito parecidos. No ateliê, transformamos as coisas de modos diferentes, mas acabamos por ter posicionamentos muito semelhantes. Agora, estou sempre muito atenta a estas questões. Por exemplo, se trabalho com argila, pergunto-me que tipo de argila. Que tipo de madeira, quando trabalho com madeira. Quando uso coisas artificiais, então têm de ser em segunda mão. Nestas novas peças, com os bordados, uso uma técnica japonesa, sashiko, para recuperar tecidos. No fundo, quero chamar a atenção para o facto de que, no ciclo completo da natureza, podemos sempre recomeçar. Estas coisas interessam-me, até a um nível mais poético.
Filipa: Vou fazer mais uma pergunta que junta duas questões fundamentais no pensamento desta exposição. Por um lado, o título que retirei da canção dos Ramones, «She Talks to Rainbows», mas que, por engano, traduzi como «Ela fala em arco-íris», em vez do que seria correto, «Ela fala com arcos-íris». O Carlos Antunes leu este título de uma forma muito extraordinária, na qual eu não tinha pensado: este «falar em» supõe uma linguagem, «falar em português» ou «falar em francês», mas também há o «falar em arco-íris». Acho que é uma ideia perfeita para as vossas obras. Na especificidade dos vossos trabalhos, penso que articulam linguagens próprias muito próximas da natureza: uma linguagem das pedras, das ervas, dos jardins, das florestas, do solo. A outra questão, uma ideia que também é fundamental no vosso trabalho, é o gesto de contrariar invisibilidades. Ainda que haja uma preocupação crescente com a crise climática, sinto que há uma cegueira em relação às espécies, por exemplo vegetais, que não encaixam em certos ideais de beleza ou utilidade, como certas ervas daninhas.
Gabriela: Ao longo dos anos, tenho vindo a perceber que as pessoas não são nada cegas. Acho que é um processo de vida. As pessoas têm essa necessidade, mas não há possibilidade de a satisfazer. Se trabalhas das nove às oito, não tens tempo para usufruir da natureza. Quase toda a gente que eu conheço tem um vaso com plantas a crescer em casa. A necessidade existe. Tenho um arquivo de fotografias sobre a presença da natureza em casa das pessoas, sempre vistas do exterior de janelas. Há sempre uma planta, às vezes até de plástico. Na minha opinião, as pessoas não estão cegas, mas a vida foi sendo ritmada por outras prioridades (criadas artificialmente) e as pessoas deixaram de olhar para o natural. Acho que tem que ver com o tempo, com o uso do tempo. Quando faço uma árvore em escultura, a primeira coisa que me dizem é: «Isto é um monte de lenha.»Mas depois, quando o trabalho começa a ter frequência, dizem-me: «Você voltou a dar dignidade à árvore.» E então, vêm mostrar-me todas as plantas que têm em vasinhos. É necessário voltar a permitir o uso do tempo para a calma e a reflexão, para que possamos olhar para o mundo de outra forma.
Margarida: Concordo contigo, Gabriela. As pessoas são muito mais atentas do que possamos imaginar numa primeira leitura. Aliás, não é só uma questão das florzinhas em vasos de plástico para decorar ou a quantidade de sementes que compramos no supermercado para meter na varanda. Em minha casa, cheguei a pensar que não tinha tempo para continuar a preocupar-me com isto de alimentar as plantas. Comecei por ter três ou quatro vasos, as plantas mais importantes, mas agora são trinta. Esta coisa de tomar conta e ver crescer está no nosso ADN, é a nossa linguagem comum. Estas são sensações que nos transcendem. É muito importante tomar conta, estar ligada a algo.
Gabriela: É engraçado que digas isso. Eu tenho muita perda de ferro e posso cair em estados extremos de exaustão física. Uma vez, em Nova Iorque, fui a uma médica holística que me disse: «Só tem de fazer uma coisa. Procure um jardim, tire os sapatos e deixe-se estar com os pés na terra.»
Marcelo: Um banho de floresta…
Gabriela: Foi um conselho incrível. Ela tem razão: há todo um equilíbrio que é preciso. É um arco-íris.
Marcelo: Estou pensando num poema fundamental na literatura brasileira, «Educação pela Pedra», de João Cabral de Melo Neto. Ele diz assim: «para aprender da pedra, frequentá-la». Mais à frente, o poema explora a ideia de que a educação pela pedra é pré-didática. Ele desenvolve todo o poema sobre a noção de que existe algo intangível reverberando dentro de nós, mas que sabemos que está aqui. Estas pedras, estas plantas, estas ervas, de certa forma, elas estão dentro de nós, fazem parte de nós. Acho muito bonita a ideia de que a linguagem está nos elementos e está em nós. É preciso frequentá-los, cultivá-los.
Filipa: Portanto, podemos todos falar em arco-íris, só é preciso vê-lo.
Marcelo: Acho muito bonita essa ideia do arco-íris, porque o primeiro relato que temos do arco-íris é de uma aliança entre o criador e a sua criação. Uma aliança eterna.