Conversa: Luiz Camillo Osorio e Marcelo Moscheta
LCO: Comecemos falando sobre o começo de sua trajetória como artista. Você ao mesmo tempo em que tem uma formação acadêmica, terminando o mestrado na UNICAMP há 15 anos, tem um percurso que vai expandindo o campo disciplinar da arte em direção à arqueologia, à ciência natural, à paisagem ao ativismo ambiental. Como estas camadas foram sendo incorporadas? Como foi se dando este deslocamento da arte para este campo ampliado da investigação dos processos naturais?
MM: Eu penso que a própria relação com os espaços mais isolados me levou a este interesse transdisciplinar. Sempre encarei a arte e seus processos como uma grande ferramenta para o conhecimento, uma desculpa talvez, para juntar coisas aparentemente incongruentes. Porque os processos artísticos não obedecem uma cartilha e isso nos dá uma liberdade enorme para poder imaginar relações que normalmente não se faz.
Então, a ida à paisagem para essa investigação de fronteiras, de limites invisíveis me chama a uma necessidade de entender mais esses lugares. Como sempre me aproximei desses temas pelo viés da memória e da sobreposição, penso que seja natural que eu vá buscar mais à fundo nos campos da arqueologia e das ciências naturais. Aliás, em realidade eu sempre tive esse apreço pela forma como essas ciências ditas “exatas"olham para o mundo, como elas organizam e reconfiguram a vida numa pseudo verdade, e que a maioria de nós, acredita como a mais pura certeza sobre o universo. Não sou negacionista da ciência, longe disto!! Mas essa idéia da exatidão do olhar científico sobre a vida é algo que eu vejo como uma aproximação poética também, mas colocada com uma certa frieza e distanciamento.
Eu cresci vendo o mundo pelo microscópio, meu pai era cientista, da área da botânica. E sempre me alertava para as excessões à regra, para os desvios que aconteciam no mundo natural e que o tornavam tanto mais interessantes quando confrontados com o equilíbrio perfeito em que a História Natural se organizou. Assim, consigo olhar para esses artifícios de construção do saber e entender que também podem ser poéticos. Gosto muito mais da estética da ciência, por exemplo, a maneira como um museu de geologia se organiza, suas prateleiras e seus arranjos de vitrines, isso é fascinante! E nesse sentido tenho buscado uma aproximação com arqueólogos e antropólogos que entendem essas relações visuais e trabalham no sentido dessa convergência.
Portanto, digo que é um caminho em que o próprio objeto de estudo - dentro da grande idéia de paisagem e seu sentido mais ampliado - me traz essas dicas, esses desvios frutuosos do caminho, encontros fortuitos que fazem mais sentido quando vistos de forma integral e não fragmentada, super especializada e setorizada.
Então, quando comecei a me deslocar sobre essas paisagens inóspitas, me sentia como voltando à origens da espécie humana. Inevitável pensar sobre forma e função, propósito e desejo quando se está deliberadamente passando frio com temperaturas negativas, debaixo de chuva num descampado, pendurado numa rocha, sem sinal de celular ou sem GPS no meio do deserto no altiplano. Essas condições extremas me dizem muito sobre minha condição de fragilidade e me conduzem de volta à este propósito mais central da existência. E dentro disto tudo, vejo aproximações muito evidentes entre a Arte e a Ciência, elas são ferramentas para se explicar o mundo.
LCO: A tradição do artista viajante remete, no mínimo, ao século XIX – período em que teve relevância junto ao processo de ampliação colonial. De certo modo, parece-me que se antes o artista retratava o desconhecido, agora ele olha em direção ao esquecido, em busca dos fragmentos de tempo não humano que está sendo destroçado pela crise do antropoceno, pela redução de todos os tempo ao tempo acelerado dos humanos – o artista viajante em busca do tempo perdido da terra engolida pelo processo civilizatório. Como você vê esta tarefa do artista viajante na sua poética?
MM: Também penso como você! Não há quase o desconhecido, não há quase pedaço de terra a ser encontrada, descoberta. Penso que passamos da noção de agentes de descobrimento do mundo para agentes de transformação desse mesmo mundo. E isso tem um significado brutal na forma como “usamos”esse mesmo mundo. Como disse, minha aproximação da paisagem se dá pela memória, que vem muitas vezes através da arqueologia, de fragmentos que retratam eventos específicos, de imagens, cartões postais que funcionam quase como um portal para esse lugar no passado.
Essa visão de artista viajante acaba sendo ainda uma idéia romântica, uma vontade de viver num mundo virgem e que se oferece a ser explorado, contemplado. Uma natureza sublime, grandiosa e selvagem. Todos conceitos que parecem não fazer mais sentido hoje quando temos a velocidade de conexão, os revisionismos históricos, decolonialismo e a ameaça climática como grandes temas que colocam o mito do eterno retorno e do bom selvagem na berlinda.
Penso hoje que meu papel como artista é mais político e crítico do que era há 15, 16 anos atrás quando comecei a me entender artista. Minha arena de ação continua sendo esse palimpsesto de memórias ligado aos lugares e territórios, à culturas que deslocavam pedras e lhes atribuíam significados transcendentes, mas penso que hoje, é impossível tratar de um tema como fronteiras invisíveis sobre territórios contíguos sem considerar o êxodo migratório pelo qual o planeta esta passando, e os impactos sociais pelo qual essa mesma paisagem é transformada. Vejo minhas questões se direcionando para debates em torno de uma transformação em escala ampliada de um mesmo território. Se antes me interessava uma maneira de olhar o espaço mais contemplativa, hoje me interessa mais o que estamos fazendo com esse lugar que habitamos e deformamos.
Para dar um exemplo, fiz uma visita de pesquisa à Ucrânia, em 2015. Fotografei alguns Terrikons nos arredores da cidade de Donetsk, que são montanha artificiais, de 150, 200 metros de altura criadas com os rejeitos da mineração da região. Esses pequenos montes pontuam toda paisagem plana da região de Donbas e são muito evidentes em qualquer recorte topográfico. Surgidos desde antes da Ocupação Soviética, são exemplos claros de um pré-Antropoceno. Assim como as barragens hidrelétricas e outras obras grandiosas da engenharia, não possuem nenhum apelo ao belo, ao sublime, mas colocam a questão de uma disputa simbólica, um tour-de-force entre homem x natureza que se traduz como a capitulação dessa última ao processo civilizatório. Na obra que realizei à partir da experiência, chamada O Trabalho dos Dias, uma fotografia do maior terrikon de Donetsk é perfurada como se fosse um cartão de ponto, aludindo à idéia de um trabalho repetitivo, realizado diariamente, no contexto da indústria local, tamanho é o impacto desta atividade que manipula de forma permanente e incontornável a paisagem e sua topografia. Na composição da obra tem-se ainda chapeiras de cartão de ponto colocadas ao lado, fazendo essa relação do trabalho industrial como transformação em escala monumental da topografia.
LCO: A Marta Mestre começa o texto dela sobre o seu trabalho com duas citações bastante interessantes, a saber: “Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara” (Saramago) e “Lama, cristais de sal, rocha, água” (Smithson). Na primeira vemos apontado este esforço de recompor um outro tempo e uma outra ética para o olhar – ligada à experiência da natureza que foi completamente subsumida pela aceleração e pelo desenvolvimento. Reparar é dar ao olhar o tempo que ele requer para ver as coisas que não são apenas utilitárias, funcionais etc. Já o Smithson traz à baila os elementos orgânicos, a vida da terra, aquilo que existe independentemente do ser humano, da cultura, da civilização. Como se sua poética tentasse juntar uma ética do olhar a uma experiência diferente da natureza, dos elementos naturais. Faz sentido?
MM: Completamente, faz todo sentido sim. Vejo aí a abordagem contemplativa da experiência do espaço natural com a sobreposição do interesse científico, de ir conhecendo os elementos até o seu nível atômico. É uma justaposição de visões muito interessante e que uso com frequência quando coloco sobre desenhos e fotografias as coordenadas geográficas ou as referências de códigos pantone. É como descrever um lugar pela pena de um poeta e ao mesmo tempo em que o olhamos através das lentes de um satélite.
LCO: Há um diálogo, nos seus desenhos, na sua forma de lidar com a imagem, com a paisagem e com a memória que me remete ao trabalho da Tacita Dean. Quais artistas contemporâneos você tem acompanhado com atenção e com quem você percebe afinidades eletivas?
MM: Bem, a Tácita é uma referência direta e reta, sem dúvida. Outro artista que estou sempre revisitando é o Richard Long, tanto pela importância história de criar A line made by walking em 1967 como pelo uso enxuto que faz dos elementos como a pedra e a lama. Quando penso no caminhar e no deslocamento - que tem sido meu grande interesse recentemente - incontornáveis são Hamish Fulton, Francis Alÿs e o português Pedro Vaz, de quem sou muito próximo. Outra amiga portuguesa e colaboradora que acabo tendo grandes diálogos é a Gabriela Albergaria, já fizemos alguns projetos juntos também. Ainda posso apontar algumas obras muito instigantes do Pierre Huygue, as fotografias da dupla espanhola Bleda y Rosa, da peruana Elena Damiani. Adoro Giuseppe Penone, Robert Smithson e a turma toda da Minimal Art.. estou sempre revendo e lendo sobre eles. No Brasil, algumas obras do Cildo me impactaram muito como Cruzeiro do Sul, e Fronteiras Verticais, onde aumenta a elevação do Pico da Neblina em 1cm. Nelson Felix, Ana Bella Geiger também me movem muito a pensar sobre o mapa, a escala e a duração temporal das nossas ações. Também sempre fico de olho no que está fazendo o Rodrigo Braga e o Marcius Galan. Mais recentemente tenho lido muito Carlos Drummond de Andrade, sua relação com a indústria mineradora e as brutais transformações da paisagem em função desse avanço me interessam muito também.
LCO: Há uma outra referência que vi no texto da Alexia Tala que achei bastante interessante – o Patrício Gusmán e seu filme Nostalgia da Luz, realizado no deserto do Atacama e que recoloca de forma bastante interessante um sublime contemporâneo ligado à luz e ao tempo arqueológico do deserto. O que me interessa nesta noção de sublime é a existência de algo que experienciamos e não sabemos como representar, ou seja, algo que sentimos, mas não sabemos nomear, objetificar, apaziguar. Algumas das suas obras lidam, talvez indiretamente, com esta experiência de trazer à vista as coisas e retirar delas o sentido reconhecível – uma pedra na sua opacidade crua, por exemplo. Faz sentido?
MM: Penso que há muito mais para se conhecer do que os nossos pobres olhos podem enxergar. Quando montei a instalação Arrasto, onde duas prateleiras apresentavam as rochas coletadas nas margens direita e esquerda do Rio Tietê ao longo dos seus 1370 km de extensão, recebi a visita de alguns geólogos na abertura da exposição. Eles olhavam para aquelas rochas posicionadas como uma narrativa do trajeto, e diziam, animados sobre a constituição geológica dos vários terrenos atravessados, as características morfológicas da constituição daqueles fragmentos, como se deu sua origem. Acertavam precisamente a localização da coleta de cada um daqueles fragmentos, mesmo sendo assinalados somente latitude e longitude - números quase abstratos quando colocados daquela maneira, não revelavam nenhum adjetivo ou sugestão poética sobre os minerais. Fiquei intrigado com a maneira empolgada que liam e interpretavam os lampejos poéticos que aquelas rochas lançavam à sua inquietação.
Aquela foi uma experiência muito profunda para mim. Já tinha visto cientistas terem pequenas epifanias diante de fenômenos e encontros dessa natureza, mas algo se revelava para mim naquele dia. A consciência de que era impossível medir o alcance do assombro que se dá a conhecer quando investimos tempo e reverência pelo objeto de estudo, mesmo que o observado seja uma pedra coletada às margens de um dos rios mais poluídos do Brasil.
LCO: Você está agora vivendo em Coimbra e fazendo seu doutoramento. Mudou-se de mala e cuia: a família e um conjunto pequeno de malas. Como está sendo esta experiência? O que você espera do doutorado? Alguma ideia da pesquisa a ser desenvolvida?
MM: Pois! Cá estou! Vivendo um desafio de me colocar como o estrangeiro dessas paragens, tentando viver uma condição de desterro. Como parte da investigação que vou fazer, quis abordar a idéia de não pertencimento ao lugar em que estou habitando. Assim como um corpo estrangeiro que se desloca através de uma paisagem para tentar melhor entender sua própria identidade, vou me recompondo como artista e agora como um candidato a futuro professor, (quem sabe??). Minha pesquisa é uma quase revisão do que fiz até agora como artista visual juntamente com uma nova proposta: como caminhadas-diálogos quero tecer conversas e trocas com artistas a respeito de questões como fronteiras, deslocamentos, migrações, intervenções no espaço natural, êxodos, nomadismos, pré-história e arte contemporânea.. todas essas trocas se darão em trânsito sobre a península ibérica.
Viver como estrangeiro é muito desafiante e apesar de ter viajado muito por conta das pesquisas e residências, nunca morei fora do Brasil. E resolvi vir agora, com a família toda, numa tentativa de reinvenção e distanciamento de tudo o que fiz até agora. Queria um pouco de tempo separado para uma coisa só, que seria impossível de fazer se estivesse em minha casa, com todas as demandas normais da vida e ateliê. Aqui em Coimbra tenho esse tempo, vou construindo novas relações com pessoas e com o ambiente, ao mesmo tempo em que penso na própria organização de minha família, meus filhos, a saudade e o que nos faz cada vez mais (ou menos) brasileiros. Não é fácil, o país passa por um momento terrível de destruição de significados afetivos, de relações de respeito, multiculturais. Portanto, estar aqui, é também me colocar num lugar onde penso à todo momento em minha identidade.
LCO: Já estabeleceu contato com artistas portugueses e a cena artística local? Fale um pouco como é para um artista que já estava consolidado no Brasil partir para este novo contexto no qual é ainda desconhecido? Este desafio dando-se no hiato da pandemia pode ser interessante, pois estão todos repensando a inserção num circuito que não se sabe como será – só se espera que saia daquela loucura anterior. Como você está encarando isso?
MM: Quando a pandemia surgiu eu fiquei muito tenso. Não conseguiu olhar para ela como um desafio a ser superado, assim como muitos de meus pares. Fiquei desanimado e com a consciência de que não poderíamos voltar a ser o que era antes. Essa idéia de novo normal.. acho horrível isso. Eu usei o tempo da reclusão, quase 2 anos para ressignificar minha vida. Não produzi quase nada nesse tempo. Resolvi olhar pra trás, organizar o que já tinha feito, por em ordem o meu site, rever os textos, ler o que não tinha dado tempo (e ainda não terminei hahaha!!!) Entrar no doutorado era já um plano antigo, e que ficou mais realizável nessa sequência dos fatos também.
Eu sempre tive uma boa relação com Portugal, foi aqui que comecei a consolidar os interesses que trago até hoje em meus trabalhos. Fiz bons amigos, minha esposa tem parentes distantes aqui. Então, faltava a coragem de zerar a vida no Brasil para essa aventura do lado de cá. Mas começar do zero é sempre um grande desafio e as portas estão se abrindo aos poucos. Já tenho projetos para exposições e propostas em editais. Já fiz muitos amigos através do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra e também com os grandes amigos que já tinha aqui no país, essa rede de afetos é necessária e fundamental, ainda mais depois de tantas restrições sanitárias. Me sinto voltando novamente à vida, aos programas culturais, aos abraços sem medo de contaminação e o despertar para o novo, diferente e estrangeiro a mim. Isso é muito bom, estou muito motivado.