_ART        _ARTIST        _TEXTS        _NEWS        _CONTACT        _instagram / vimeo_




Cartografia da sombra: Pedro Vaz e Marcelo Moscheta
Luís Pinto Nunes




Composições inscritas pela paisagem, alegorias à Terra e monumentos à natureza.
Uma nota introdutória: a constante procura da totalidade do Homem, o encontro do mundo consigo mesmo, remete-nos à natureza e à maneira como nos revemos no natural.

Pela relação estabelecida na reunião dos trabalhos de Pedro Vaz (PT) e Marcelo Moscheta (BR), é evocada a Terra, uma terra que deixa de ser natural no sentido em que lhe é imposta a interferência do Homem. Através de duas investigações sobre a paisagem e a natureza – a de um artista português no Brasil e a de um artista brasileiro em Portugal –, é reconhecida ‘uma’ paisagem que foi operada e que é agora reencontrada pelo Homem. São exemplo as deambulações destes autores, que acentuam a procura desta reconciliação e reconhecimento pela Terra e pela natureza. A relação consciente que estabelecem com a natureza nas suas expedições não tem o objectivo de a corromper, mas sim de assinalar a interferência humana, na sua presença e acção. Estas expedições são entendidas como actos estéticos, imersivos, plenas de ponderações que as justificam, pela selecção do lugar e do percurso, traduzindo-se na definição de um tempo e espaço, mas também na do silêncio, que assinala as diferentes acepções culturais e geopolíticas que os espaços acarretam em si.

Sabemos também, que a transmissão de uma imagem de um local ou de espaço que é para nós novo, proporciona uma experiência alegórica. No decorrer do século XVIII, o recurso às gravuras em água-forte que potenciavam a disseminação da imagem, introduzem alegorias produzidas por gravadores, ao gosto do romantismo, de espaços nunca antes visitados, como forma de retrato do ‘património cultural’ que observavam e como suporte para a documentação. A experiência do espaço e a sua representação formal, eram claras e evidentes para quem nunca tinha visitado estes lugares. Estas representações, despojadas de cientificidade, adquirem características alegóricas, potenciando assim a experiência do estar, tido à época como exótico. Gravuras que se tornaram tratados da imagem, que servem um primeiro esforço para a documentação sistemática da paisagem e do património natural, que acabam por se tornar objecto na Land Art.


Imbuídas num gesto alegórico semelhante ao das gravuras em água-forte, as imagens de Pedro Vaz relatam a expedição que realizou em 2016 pelo Caminho do Ouro, construído no final do século XVII, no Brasil, que se multiplicam através da pintura, da fotografia e do vídeo, que realiza. Revisita um percurso que contém um legado histórico e civilizacional, comparando-o com os relatos escritos e pictóricos da época em que foi definido. As interpretações deste autor a estes percursos históricos, tornam-se assim alegorias contemporâneas, que vêm confirmar e afirmar a pertinência do reconhecimento desta paisagem natural, através das novas imagens que propõe. Da relação entre os registos que realiza em campo, passa à interpretação da imagem, para dar a explicar e replicar o olho humano, tornando-se aqui um mediador da natureza.

Esta expedição de Pedro Vaz percorre diferentes paisagens no trilho do Caminho do Ouro, definido ao longo dos braços de água, que parecem agora não ter um espaço no tempo, imersas pela natureza que aparenta estar intocada, mesmo tendo sido domesticada pelo Homem ao longo dos tempos. A estas figurações da paisagem, são-lhes subjacentes o estudo da sua geografia, da história e do contexto social e político, que levou à sua definição.

Em “Cartografia da Sombra”, é apresentado o segundo momento desta expedição que percorre este caminho, que está actualmente desmantelado, mas não desvirtuado, tendo sido a primeira iteração desta expedição apresentada na exposição “Caminho do Ouro – Trilha do Facão” em 2017 na Kubikgallery.

Um aspecto inerente à organização conceptual e interpretação de um lugar e território, passa por um entendimento de composição, independentemente do media seleccionado pelo artista para a acepção do espaço. Existe uma combinação de factores que o assiste: o arranjar de propósitos, de elementos e volumes, que se articulam de acordo com uma ordem, um ritmo e lógica. Qualquer relação estabelecida entre as formas encontradas na natureza, é posteriormente adaptada ao propósito do ensaio de quem a reencontra. Neste processo não são descurados gestos ou atitudes, mas sim relevada a sua intencionalidade.

As composições de Marcelo Moscheta, concretizadas a partir de uma selecção cuidadosa de elementos da natureza, propõe um lugar e um espaço, sacralizando-os através da fotografia e do desenho. Nesta acção, a natureza, ao contrário do habitual, é o referente de escala. É através destes elementos contemplativos que reencontra, construções edificadas pelo homem que modelam a paisagem, que são aqui tidos como documentos que registam a relação do Homem com diferentes locais de passagem, e destacam as memórias sobre eles construídas. São estruturas implantadas no meio da natureza que museógrafa nas suas expedições, que aparentam já ter perdido a sua função, tornando-se assim pequenos ‘totem’ que delineiam a paisagem, na qual o corpo se transpõem e desloca, consolidando factos que narraram o passado. São pequenas arquitecturas, na sua génese são pedras que são matéria, plantadas na paisagem dotando-a de novas morfologias como se fossem rochedos naturais.

Em Portugal recolhe e reconfigura pedras provenientes de locais importantes para o reconhecimento geopolítico do país, como estradas do período românico ou a delimitação de territórios fronteiriços, verificando nestas pedras trabalhadas pelo Homem o ADN de uma paisagem. São estas as pedras que se reconfiguram em pequenos monumentos. O reenquadramento que Marcelo Moscheta propõe para estas estruturas, resulta neste caso a partir das deambulações que realizou por Coimbra, Conímbriga, Foz Côa e Aldeias de Xisto, espacializando o objecto recolhido, desenhando-o e registando fotograficamente o território sinalizado, em Ambulare.

Pelo entendimento deste conjunto de pequenos estudos formais que se relacionam entre si pela cena retratada, promove-se uma especulação sobre o território. Nos jogos de composição que propõe, logo a partir da primeira captura da imagem no local onde este a identificou, revela um exercício que reflecte uma sobreposição de contextos e planos formais, tornando-o numa nova composição na paisagem e no plano bidimensional da imagem. Surge em galeria uma nova linha do horizonte, escalada pela natureza, partindo de uma paisagem que é definida pela significância da relação entre estas estruturas concretizadas pelo Homem e absorvidas pelo seu envolvente natural, mantendo o legado da sua função primeira.


“Cartografia da Sombra”, coloca o trabalho destes dois autores em diálogo, explorando a ação de caminhar, com ou sem plano, de deambular ou não, demonstrando as derivas de cada um em diferentes territórios. Fica em evidência o reconhecimento de Pedro Vaz e Marcelo Moscheta, perante a intervenção do Homem na natureza e a forma como esta se redefine com a passagem do tempo. De acordo com a entrevista realizada aos autores, se para o primeiro as pedras que construíram o Caminho do Ouro se tornaram uma ode à alegoria da representação da paisagem, para o segundo, são a pedras que se tornam a facto da sua significância enquanto agente mediador na definição do propósito da paisagem. O registo, o ensaio, a natureza que lhes é permeável, permite estabelecer relações entre as suas investigações que ultrapassam as questões da forma, e se diluem nos refentes e nas partilhas de quem reconhece ‘o mesmo’ diário de bordo. Para ambos, a concepção da natureza e a forma como é representada, permanece na incerteza de que a própria natureza reclama a sua condição enquanto matéria e objecto artístico, pela circunstância e processo que conduz ao seu reencontro.






texto para a folha de sala da expsição
Cartografia da Sombra - Kubik Gallery, Porto.
maio de 2023