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Anotações sobre desejos classificatórios e outros incômodos criativos
Marcelo Moscheta




Existe um tempo inerente à obra de arte, uma forma de operar que não obedece a prazos e demandas, mas sim a um prazeroso e, ao mesmo tempo, angustiante processo de curiosidade premiada. Quando se viaja – e utilizo deslocamentos e enfrentamentos com o lugar como combustível para minha criação –, a própria transformação não é vista no momento, pois a viagem reverbera dentro do viajante por um tempo, e seu caderno de viagem se torna completo somente quando ele volta para o lugar de onde partiu. Voltar ao ateliê depois do deslocamento pelo mundo é ter uma constante tentativa de transpor a relação com o lugar e medir a paisagem e a experiência em uma outra escala, mesmo que ela tenha que ser milímetro por milímetro. Sobre a poética briga entre olhar macro e o olhar micro, estão o homem e seu desejo constante de domar tudo o que há na terra, seu tempo e sua memória.

Na obra Linnaeus – pivô para todas as obras desta exposição –, todo o desejo de compreensão do mundo está escancarado. Escrito em etiquetas de papel prontas para ser aplicadas às suas coisas correspondentes, o mundo permanece vazio de significado até que alguém tome a atitude de nomeá-lo. Assim foi com Adão, o primeiro homem, que teve a incumbência divina de nomear e separar os animais e seus correspondentes, e assim permanecemos até hoje, dando nomes àquilo que não sabemos exatamente o que é. Permanecemos curiosos pelo mundo, com a força que nos move em direção ao desconhecido, ao estranho e ao diferente.

Os nomes trazem as coisas à existência. Aquilo que não era existente passa a ser presença através da força da palavra conferida à forma. Nas caixas vazias que esperam para ser preenchidas de "coletas", de exemplos do mundo conhecido, lê-se que, no princípio, havia um jardim. Ele, porém, ainda está lá, esperando a descoberta e a identidade de uma paisagem que parece nunca acabar.

Gosto da ideia de uma existência latente, algo que não se revela por completo, que está ali, talvez de forma invisível ou incompleta, mas que não é percebida num primeiro contato mais distraído. Essa presença desprovida de visibilidade se revela como potência e assume então um espaço dilatado no tempo, pois ocupa o futuro em sua revelação, o presente em sua mensagem e o passado pela sua não materialização. Nesse espaço/tempo da obra, habitam os fantasmas, subtraídos de folhas de papel carbono, transferidos para outras superfícies, migrantes por excelência de uma paisagem igualmente cambiante. Evocar uma presença através de uma ausência é fazer um exercício de construção através de contraposições – e essa é minha forma de pensar o fazer artístico. O lugar geométrico do eu, como diria Ítalo Calvino, repousa na intersecção entre a linha do horizonte – a paisagem – e a linha vertical contida nela – meu corpo. Desse cruzamento, resultam as medidas necessárias para se construir um espaço/obra pautado na paisagem como referência para o eu.

O ato de coletar pedras e transportá-las a um outro local é talvez um dos primeiros traços de uma civilização que deixa de ser nômade e começa a pensar nos espaços privado e individual, em contrapartida ao espaço comunal. Esse é o momento no qual o homem se vê transformador de seu entorno e, consequentemente, ganha o poder de interferir na Criação e também o de manipular elementos naturais para que trabalhem a seu favor. Assim, é desenhada a propriedade privada; agora, pode se transportar uma rocha para se fazer um muro, cortar uma árvore para fazer uma cerca, manejar todo um sistema de plantios, de dispersão de sementes e de colheitas programada. A paisagem então se torna alterada não somente pelos vulcões e grandes terremotos mas também pela mão do homem, que desenha sua história sobre a superfície do planeta.

Eu vejo a paisagem como um contraponto para medir a mim mesmo, um referencial externo que possa dar a exata medida do tamanho do eu. Ideia romântica que presta reverência às últimas grandes explorações do século XIX, quando os polos do planeta e os cumes dos montes mais altos eram, por certo, uma descoberta do lugar e, ao mesmo tempo, do limite próprio do homem. Minha relação com a paisagem repousa numa tentativa primeira de construir um lugar ideal, uma imitação da natureza como retrato fiel das relações de perfeição e equilíbrio. Quero, assim, abarcar todas as possibilidades de entender um local, não somente por meios sensíveis, como o desenho ou a fotografia, mas através de formas racionais de se entender o Lugar: latitude, longitude, altitude, cálculos matemáticos e referências técnico/científicas. Os mistérios da força que age em segredo na natureza são recriados por vezes de maneira brutal; por outras, de forma delicada e quase imperceptível, num ato de se compreender de maneira integral a matéria da qual somos formados.


texto para o catálogo da exposição Carbono 14, realizado na SIM Galeria em Curitiba em 2015.