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A classificação das coisas
Ricardo Resende

Curador


Não basta contemplar as nuvens, é preciso também, ao menos um pouco, compreendê-las. Como qualquer coisa muito simples e bela, as nuvens são um perigo para o homem.1

Os homens morrem ou se matam por coisas muitos simples, como o dinheiro e o ódio. Um quebra-cabeça engenhoso demais não leva ninguém ao suicídio: há quem renuncie rápido, e quem encontre solução. As nuvens são um quebra-cabeça perigosamente simples: se tirarmos uma fotografia de uma nuvem flocosa e aumentarmos uma parte dela, percebemos que a borda irregular de uma nuvem se parece, ela mesma, com uma nuvem. E isso ao infinito: qualquer detalhe de uma nuvem se parece com a sua estrutura geral.2

Conversar com um artista é a melhor forma de com ele trocar conhecimento e experiências e de entender seu processo criativo. Ir até o seu espaço de criação é ir ao seu encontro. E é este o exercício maior da crítica de arte.

Cabe ao crítico o trabalho de tentar, à exaustão, explicar uma obra artística em um contexto onde se evidenciam os anseios humanos, o confronto do homem consigo mesmo, com seus medos, suas dúvidas e, acima de tudo, com sua própria condição humana – a de animal que age deliberadamente.

O convívio e as conversas intensas tornam possível ao crítico escrever sobre a obra do artista, para tentar subtrair seu conteúdo. Encarar o artista e seu trabalho para aí encontrar a sinceridade e a emoção do desejo de colocar o mundo em ordem; classificá-lo, portanto. Mesmo que a classificação do mundo comece pelo gesto simples, mas reservado a poucos, de observar, pintar, desenhar ou escrever sobre nuvens.

Faço esta introdução para me situar na tarefa e no exercício de escrever sobre a obra de Marcelo Moscheta, depois de alguns encontros em que abordamos, repetidas vezes, a questão da “classificação” das coisas.

Quanto mais me tardo em concluir este texto, mais informações vêm ao meu encontro, ampliando a minha reflexão sobre o tema. Dentre elas, escolho o relato de Umberto Eco sobre a sua recente experiência no museu do Louvre, em Paris, como curador convidado.

A lista é a origem da cultura. Ela é parte da história da arte e literatura. O que a cultura quer? Fazer o infinito compreensível. Ela também quer criar ordem – não é sempre, mas o quer com frequência. E agora, como ser humano, alguém encara o infinito? Como alguém tenta segurar o incompreensível? Através de listas, através de catálogos, através de coleções em museus e através de enciclopédias e dicionários. Há uma especulação em enumerar com quantas mulheres Don Giovanni se deitou: foram 2.063, pelo menos, de acordo com o libretista de Mozart, Lorenzo da Ponte. Nos também temos práticas e completas listas – a lista de compras, listas de afazeres, o menu - que são também conhecimento cultural à sua maneira”.3

O que Marcelo Moscheta nos propõe é ver o mundo segundo a ideia de classificação que vige em sua bela obra. Mais: que essa obra funcione como um prisma em paralaxe; que cada leitura de seus trabalhos se dê a partir de um novo ponto de observação; e que, através, sim, da beleza de uma obra, deixemos de ter uma única forma de observar o mundo.

Fundamentada ao longo de dez anos, sua carreira teve no início, como motivação particular, as referências à memória de seu avô, imigrante italiano que veio para o Brasil no inicio do século XX, e também de seu pai, “um misto de biólogo e botânico”, na descrição do próprio artista.

Por mais que ele tenha “enterrado” figurativamente seus antepassados, com o desejo expresso de rompimento com o passado, as viagens, as expedições, as cartografias, a geografia, os mares, as geleiras, as montanhas e os passeios pelo campo são elementos compositivos de sua obra e estão intimamente relacionados às lembranças afetivas que sempre o acompanharão.

O artista conta que a construção desse processo poético iniciou-se na tentativa de recriar espacialmente os lugares vividos por seu avô italiano (que ele nunca chegou a conhecer) na região do Vêneto, tomando como ponto de partida as imagens dos cartões-postais e fragmentos diversos, tais como fotografias e anotações pessoais, que chegaram às suas mãos – a fotografia, aliás, se faria presente em praticamente toda a sua produção.

Desejo taxonômico


O primeiro contato que tivemos deu-se no Salão de Artes de Campinas, no edital de 2002. Moscheta apresentou à comissão julgadora as séries Insectae e Insectae universalis Em Insectae, que tanto impressionou a comissão julgadora, pequenas gravuras em metal são organizadas e elencadas como se conformassem um “catálogo” de museu de zoologia. A série já prenunciava o procedimento museológico e o desejo taxonômico de classificar o mundo, que se mostrariam recorrentes em seu trabalho.

Insectae é uma instalação de construção meticulosa, com 260 gravuras em metal e alfinetes. A ideia desse trabalho veio de um desejo de homenagear seu pai, que costumava levar os filhos ainda pequenos para passear e acompanhar suas coletas de campo. Como abordar flores e frutos era muito entediante para os três meninos que o acompanhavam nas expedições, ele costumava levar uma rede caça-borboletas para distraí-los, a fim de que pudessem brincar de capturar e classificar os pequenos insetos que encontravam.

Com o sombreado sob suas asas, os insetos parecem readquirir corpo, e a transparência de suas asas aparece nitidamente. Já na série Insectae universalis, as mesmas mariposas são serigrafadas sobre folhas de papel, com tabelas numéricas e gráficos de fundo evocando cadernetas de classificação.

Com esse interesse na observação da natureza, o gênero paisagem prevalece em sua obra. Além das séries já mencionadas, aquela edição do Salão de Arte de Campinas selecionou Moscheta por outra série, Paisagens que nunca conheci. Nela, a serigrafia transparente era aplicada sobre desenhos a carvão. As obras, de grandes dimensões, tinham como tema a arquitetura das cidades italianas onde seu avô viveu.

Nosso segundo encontro deu-se em 2007, numa visita ao ateliê coletivo que Moscheta mantém com ex-colegas de faculdade, em Campinas. Dessa visita ao espaço onde o artista faz pesquisas, dá aulas e orienta trabalhos, nasceria a ideia de sua exposição na galeria Léo Bahia, em Belo Horizonte, e fui convidado a escrever o texto para o catálogo da mostra mineira.

No ateliê do artista, pude conhecer melhor o seu universo criativo. No organizado ambiente, ressaltava a execução meticulosa dos trabalhos de Moscheta, confirmada depois em seus desenhos e instalações.

Os objetos e equipamentos que cria esse artista -- um inventor, quase como um “professor Pardal” – se destinam a instalações que evidenciam certa precariedade tecnológica, mas nunca uma organização aleatória.

Expedições e exploração da paisagem


Ainda no campo da relação entre homem e natureza, a obra de Moscheta alude também a expedições exploratórias dos lugares mais distantes da terra. Cita a Expedição Imperial Transantártica, de 1914, organizada pelo explorador irlandês Ernest Henry Shackleton (1874-1922), que vagou com sua tripulação por dois anos no Continente Antártico.

Essa aventura -- talvez a mais fantástica das expedições marítimas de todos os tempos – motivou Moscheta a criar a instalação Elephant Island, 24 de abril de 1916. Consiste de duas projeções simultâneas de imagens feitas por Frank Hurley – fotógrafo australiano que registrou a saga dos tripulantes sob o comando de Shackleton no navio Endurance. Acomodados sobre bases de madeira em um canto da sala de exposição e interligados por cabos elétricos que criam um emaranhado de fios no chão, os projetores se direcionam cada qual para uma parede, cruzando as imagens projetadas.

Marcelo Moscheta cria muitos de seus trabalhos visitando lojas de material de construção, de ferragens, de elétrica, vendo construções à beira de estradas, seus milhares de metros cúbicos de terra sendo removidos. Existe um fascínio, em sua obra, por entender “o engenho do mundo”, como diria o escritor Italo Calvino. Não é casual, portanto, que territórios por explorar – por entender – façam parte de seu imaginário artístico. Moscheta narra de forma poética a determinação e da aventura do homem, ao descobrir e conquistar o mundo.

O caráter da expedição inspiradora também reaparece em outras séries, que tratam de paisagens gélidas e inóspitas para o ser humano: nos desenhos de Antártica, Branco gelo, Branco neve, Mars Equivalent Landscape; e nas fotos feitas em estúdio que compõem Círculo Polar.

Entre suas referências, Moscheta elenca outros artistas que têm na paisagem uma tradicional fonte de inspiração – nomes como Robert Smithson, Richard Long, Francis Alÿs, Gerhard Richter, Fernando Pratts, Sandra Cinto. Artistas com obras bastante diversas, mas que guardam em comum o desejo expresso na paisagem. Alguns se introduzem para fazer parte da paisagem; outros a pintam; outros a fotografam ou filmam. Nem sempre seus trabalhos se referem à paisagem, mas “acontecem” nela. São simples gestos de observação das coisas da natureza – “a arte do olhar”, segundo o norte-americano Robert Smithson, para quem o o artista, antes de ser um fazedor de objetos de arte, é um lançador de olhar, com olhos livres.

Marcelo Moscheta, herdeiro da geração dos anos 1960 e 70, tem interesse especial pela formação da paisagem, criada a partir do posicionamento do observador no local a ser retratado. Ou quando desloca um elemento da paisagem, contaminando outros territórios (a pedra, em Deslocando territórios: Galiza).
Os lugares retratados por Moscheta são sempre desérticos e vazios, carregados de lirismo e melancolia. A memória do lugar é subjacente a esse encontro do artista com a paisagem que observa, e se vislumbra nos seus desenhos ou fotografias.

A figura humana


O que não se vê em sua obra é justamente a presença da figura humana. Como os românticos do início do século XIX, que substituíram a pintura da história e da religião pela pintura da paisagem, banindo a figura humana. Os pintores românticos desejavam que os elementos da natureza transmitissem sozinhos todos os sentidos simbólicos da existência e que suas obras pudessem, mesmo prescindindo da forma humana, ser tão heróicas ou épicas quanto os quadros encomendados, em eras anteriores, pela nobreza e pela Igreja.

É somente em imagens meio obscurecidas pelos anos – as fotografias apropriadas para a instalação Elephant Island, 24 de abril de 1916 -- que, em toda a sua produção, aparecem pessoas; como fantasmas de um tempo passado. A presença do homem, em sua obra, se dá no olhar do artista que observa a paisagem retratada, assim como no público que a observa. Uma situação muito comum nas proposições dos românticos, que exaltavam a insignificância humana diante da magnitude da natureza. Nem nos postais apropriados de seu avô e modificados com intervenções em aquarela, nem nos desenhos e fotografias em que recria de memória de ambientes inóspitos, vazios e silenciosos.

A memória de seus antepassados dá lugar a ainda outra série de trabalhos. Em Le nouveau paysage du parallèle 48, Moscheta reconstrói os lugares que o seu avô havia passado antes de imigrar para o Brasil. São paisagens italianas de vistas marinhas, que recebem as intervenções do artista. As imagens, como cartografias náuticas, levam números ficcionais que representam a localização meridional “exata” daquela vista.

A mesma numeração catalográfica inventada se vê nas séries Densitometrics, Desnível, Mars Equivalent Landscape e nos Megalithes de Bretagne, Sublimeschedule. Todos esses trabalhos levam o mesmo processo classificatório, como a lhes conferir autenticidade.

Nas suas incursões para observar a paisagem e registrá-la em fotografia ou desenho, o artista descreve que, apesar de se estar só, carrega consigo seus sentimentos e medos, estabelecendo assim uma relação com o lugar em que se encontra naquele dado instante.

Há nesse procedimento um modus operandi romântico de observação do mundo, mas também um tipo de land art. Um pouco do que fazia Richard Long, uma tentativa de transformar a paisagem com o que poderíamos chamar de “pequenas mudanças na natureza”.

É o que se apreende, por exemplo, da série de trabalhos Deslocando territórios: Galiza, na qual pedras são movidas de uma região para outra, de um território para outro: de seu local de origem até uma sala de museu no país vizinho, onde ressurgem, além da fronteira, classificadas.

A incursão do artista e sua ação sobre a paisagem se faz notar, principalmente, na série Meghalites de Bretagne, Sublimeschedule, em que o artista faz um trabalho de arqueólogo ao buscar e mapear na paisagem da costa da França, palco da Segunda Guerra Mundial, os resíduos do conflito bélico na forma dos megálitos – grandes pedras, carregadas de significados mitológicos ou místicos, encontradas em sítios arqueológicos.

Nos trabalhos de Moscheta, o significado é dado pela sua negação, nada mística. É memória de uma catástrofe provocada pelo próprio homem. As pedras abandonadas agora fazem parte daquela nova paisagem. Tornam-se memórias do lugar e do homem.

Dos megálitos para as pedras, simplesmente: outra presença constante em sua obra. Esses minerais estão carregados de significado, e como matéria acumulam a memória do mundo.

Na série Pedras, exposta em 2009 no Instituto Tomie Ohtake como parte de uma instalação apresentada na mostra Ponto de equilíbrio, o mineral comparece como índice de um lugar – segundo a ideia de Umberto Eco de que as listas seriam como “índices do mundo”’. Mas essas pedras trazem também a ideia de representação do lugar vivenciado e das várias maneiras de compreendê-lo. A obra cria um estranhamento ao apresentar a pedra em si, em uma prateleira fixada na parede, logo abaixo da sua representação proporcional em desenho sobre uma placa de PVC negro. É como se o artista quisesse reafirmar a existência do mineral dissecado na sua forma, espaço e volume; o mesmo processo classificatório se complementa com a numeração, incrustada na base de metal, correspondente à latitude e à longitude exatas dos locais onde as pedras foram coletadas.

O procedimento continua o mesmo das brincadeiras de crianças, das séries iniciais das mariposas, e recorrerá também nas suas representações de nuvens – observar as formações no céu era outra distração dos passeios campestres na infância.

Na exposição Mare Incognitum, no Centro Maria Antonia da Universidade de São Paulo, Moscheta apropriou-se da expressão em latim usada para representar áreas inexploradas dos mapas até o século XV. Trabalhos que representavam o mar na sua imensidão, que tem na linha do horizonte a noção de infinito em todas as suas possibilidades de deslocamento, conhecimento, de aventuras exploratórias.

Para essa exposição, o artista apresentou trabalhos relacionados ao mar: as séries Le nouveau paysage du parallèle 48, Desnível 007.PRTGL e Desnível 003.FRTLZ e Elephant Island, 24 de Abril de 1916.

As vistas marinhas de postais antigos e paisagens com seus icebergs são, na verdade, trucagens de fotografia e colagens de cartões postais antigos. O artista cria, assim, imagens polares sem nunca ter pisado ou navegado tais latitudes. Nelas, a referência principal é a das grandes expedições para lugares desconhecidos do planeta, que avivavam a imaginação dos antigos com os seus mitos, e a dos românticos, com suas paisagens trágicas e misteriosas.

Ao catalogar pedras, montanhas, geleiras e depois reapresentar todos esses elementos, o artista parece desejar dar ao mundo uma ordem diferente daquela que conhecemos.

A cor do infinito


Uma grande parte da obra de Moscheta se caracteriza por fundos negros, que acabam por ”colorir” sua produção artística. É um negro tão profundo que nos faz pensar na noção mais aterradora de infinito. Afinal, que cor é a do infinito, quando o retratamos ou o construímos nas nossas mentes?

Proponho que seja o mesmo negro que observamos nos desenhos do artista. A cor, de tal intensidade, é nada mais do que a cor da chapa utilizada como suporte para seus desenhos feitos a grafite.

No contraste entre o negro e o prateado acinzentado do carvão é que se dá a visualização de suas imagens. O processo é muito simples. Primeiro, o artista cobre todo o fundo com grafite, para depois apagar o que seria o contorno da imagem. Em sua maneira de desenhar, serve-se da borracha, num processo inverso ao convencional. Depois desse minucioso trabalho de apagamento, é com a ajuda do reflexo da luz lateral que se dá a maior nitidez das imagens criadas.

É com essa técnica que Moscheta extrai a dramaticidade vista em suas obras e que aqui tem como referência a história da arte. São obras fundamentais as dos artistas ingleses Alexander Cozens (1717-1786), e William Turner (1775-1851).

Cozens olhou para as nuvens e as viu como formas artísticas dramáticas desenhadas no céu. Imagens de aparente serenidade, que prenunciavam a chegada de mudanças climáticas. Especialistas que desenvolviam essa percepção sensorial tinham um fim social na época, ajudando na agricultura e no funcionamento dos moinhos de vento. Tal exercício meteorológico não era visto como artístico, mas era essencial para a segurança das construções e das plantações agrícolas.

No encontro que tive em 2007 com Moscheta, em seu ateliê, conversamos sobre Cozens e sobre a profissão de observar nuvens para classificá-las. Vem daí o trabalho Estudo para espaço, uma instalação feita de caixas de plástico usadas como embalagem para chocolates e algodão, apresentada, primeiramente, na exposição Rumos Visuais de 2009 e, depois, na Capela do Morumbi, em 2010, ambos em São Paulo.

Em outra série de desenhos, A New Method For Assisting The Invention In The Composition Of Clouds, feita em 2009 para exposição do 13º Festival Cultura Inglesa, na sede do British Council, em São Paulo, as chapas de PVC expandido trazem ainda uma placa de alumínio com frases gravadas, extraídas de instruções do artista inglês ao observar as nuvens.

Já em Contra.Céu, exposição que teve lugar em 2010 na Capela do Morumbi, um grande painel de grafite trazia, na metade inferior, um espelho diagonal, a refletir a parte superior. O projeto pauta-se na ideia de representação/construção de um ideal de pedaço de céu, tendo sua imagem espelhada logo abaixo do desenho original. O ângulo de 45º em relação ao observador, a uma certa distância, não reflete a imagem de quem a observa, mas sim o desenho logo acima, criando um jogo de ilusão de perspectiva que remete aos afrescos e pinturas dos tetos e paredes das igrejas barrocas.

A união da imagem desenhada e seu reflexo acabam por criar um duplo sentido, uma espécie de mancha de teste Rorschach. A estrutura colocada no altar da capela “recebia” o visitante, trazendo para aquele espaço uma dupla representação do céu -- no mesmo lugar o religioso e onírico -- procedimento adotado no barroco para despertar a fé religiosa dos fiéis a um simples olhar seu para a nave central de uma de suas igrejas.

Contra.Céu é, também, uma clara referência ao contrapiso, a parte preparada do solo nas construções antes de receber o acabamento final, em oposição ao céu – o teto. Ao nos vermos projetados no espelhamento do material, em meio às nuvens desenhadas pelo artista em uma das placas que compõem a instalação apoiada no chão, invertem-se as coisas do mundo entre a Terra e o Paraíso (céu), o bem e o mal. O espaço sagrado de uma capela é fundamental na construção dessa ideia, pois estabelece o diálogo entre o mundo e sua transcendência: da vida terrena para a vida espiritual. Para Moscheta, “as nuvens são primeiramente uma ideia de transitoriedade muito forte. De fragilidade e de efemeridade”.

Seus primeiros desenhos com grafite sobre placa de PVC negro foram de nuvens, que travavam uma relação de permanência versus fugacidade. Opostos que ficam patentes no processo de criação, pois o grafite nunca é fixado sobre o PVC e se torna muito frágil -- ao menor toque de dedos o desenho pode ser apagado, danificado, borrado. Cria, portanto, uma situação instável de significados – no sentido efêmero das nuvens e na permanência frágil do desenho em grafite sobre a placa de PVC.

O romantismo, a teoria do sublime, ou mesmo a visão mais empírica do estudo do comportamento das nuvens, passando pelos termos meteorológicos, acabam sendo, para o artista, aspectos poéticos e instigantes, mais do que a mera possível constatação, ao olhar o céu, de que possa, por exemplo ”chover daqui a pouco”, em suas próprias palavras.45

Marcelo Moscheta parece traduzir para a atualidade o mesmo mundo romântico que sofre com as transformações provocadas pelo homem, a força da natureza em contraste com a fragilidade e a fugacidade humanas. Trata-se de um mundo que se apresenta nos seus contrários e contradições.

Era princípio fundamental do simbolismo romântico que o sentido não se pudesse nunca separar inteiramente de sua representação simbólica. A arte olha para tudo, nada é pequeno demais para ela: é o desejo de tentar “desembaraçar o sentido latente dos elementos naturais, a significação oculta destes na própria natureza”.6 E a presença destas intervenções humanas no ambiente natural. O navio que se vê no desenho Friedrich surge como um navio fantasma ancorado ou mesmo abandonado no que seria uma “porta do inferno” (o breu intenso que emana do negro da chapa de PVC a prevalecer no fundo).

De forma ambígua, a “tranquilidade” das nuvens retratadas por Cozens, citadas anteriormente, poderia parecer oposta a alguns dos trabalhos de Moscheta. Pode-se antever, naqueles céus aparentemente serenos, um mundo em convulsão e em constante transformação.

O processo de (re)ordenar o mundo


Para Moscheta, tudo que se relaciona ao trabalho artístico faz parte de sua obra, entendida como algo processual. Tudo passa a fazer parte – a apropriação do postal retirado dos guardados de sua família, o momento que o artista vivencia e com quem convive, o seu entorno, o material que utiliza, o equipamento e até a moldura desenhada são incorporados à estrutura do trabalho de arte.

Os suportes, os materiais, a projeção de imagens, a fiação elétrica, tudo acaba fazendo parte de suas obras. Como já foi montador de exposições, tem o apreço pelo detalhe, pelas exigências de um trabalho bem acabado.
A fatura de seus desenhos minuciosos chega a confundir a nossa noção de realidade. Ficamos sem saber se o que estamos vendo se trata, na realidade, de uma fotografia ultrarrealista de nuvens, por exemplo.

Sua obra se caracteriza como um arquivo do mundo. Um arqueólogo que cataloga pedras, que as registra em desenhos e depois as expõe, como em um gabinete de curiosidades do século XVIII; a pedra e a sua representação em condições expográficas que lembram mostras museológicas, reforçando a idéia de uma taxonomia das coisas e lugares. Um procedimento comum que se percebe recorrente na arte contemporânea, diante de várias obras compreendidas como arquivos de artistas, hoje.

É novamente Umberto Eco quem lança luz sobre este tema recorrente na história da arte, o do arquivo como memória e obra do artista, ao afirmar que o desejo de catalogação, manifesto em listas, seria uma forma de escapar dos pensamentos da morte: gostamos de listas porque não queremos morrer ou pelo menos, encarar a ideia de finitude.

Para Moscheta, trata-se simplesmente em um desejo de artista de organizar as coisas e entender o mundo. Em sua própria definição, “o artista é alguém que se propõe a renomear as coisas e as relações que existem no mundo, segundo outros critérios que não os da natureza e da cultura já preestabelecida”.

Nas séries de monotipias Cabinet du Bois Brésilien, de 2008-2009, e Reordering series, de 2010, esse fascínio catalográfico é explorado com rara poesia ao retratar sessenta espécies de árvores brasileiras. O azul do papel carbono, que confere estranhamento e artificialidade às árvores, é característico de fichários antigos. As árvores azuis, contra o fundo cinza da gravura em metal, tornam-se uma melancólica e repetida paisagem. Têm a mesma linha de horizonte a lhes dar base. Por fim, formam um retrato do mundo a perder de vista.

Os trabalhos de Marcelo Moscheta, as suas séries, carregam essa “estética organizacional”, um certo cientificismo amador, muito mais gráfico do que investigativo. Tudo isso porque a ideia de completude dentro da obra assume parâmetros de veracidade quando ele adiciona o dado científico/racional – quando, por exemplo, insere uma localização de GPS (latitude/longitude) sobre um desenho, tornando-o mais verídico: esse dado objetivo acrescenta uma certa autoridade sobre a construção da obra pelo artista, procedimento geralmente mais subjetivo.

Toda sua obra é permeada por esse cientificismo classificatório ou por esse procedimento museológico. Por exemplo, em suas 33 Montanhas – desenhos de montanhas sobre a chapa de PVC negro, suspensos por “pernas” de metal, que evocam fortemente uma ideia de acúmulo e de certa instabilidade proposta pelo artista. Com a sobreposição das chapas desenhadas criam-se planos e profundidade.

A ideia de acúmulo se estende a um acúmulo temporal: 33 anos era sua idade em 2010, quando realizou o trabalho, como se cada montanha fosse um marco do tempo. A obra mostra toda a precariedade humana, representada pelas estacas, apenas encostadas na parede. Não é mais uma ideia de imensidão, de confronto com algo maior; os picos se convertem em algo mais aconchegante à medida que os reconhecemos na fragilidade de seu estado constitutivo rochoso, coberto por gelo. Silenciosos, esses montes reinam solitariamente na sua monumentalidade e se tornam, ao ser retratados pelo artista, humanizados.

Em meio a essas paisagens “monotónas” que descrevo, o que se percebe nos desenhos “inventados” do artista, como Still, ou na série Branco gelo é, ao contrário, um mundo muitas vezes soturno e mutável. Uma atmosfera poética que nos espreita no silêncio aterrador dessas paisagens desenhadas, onde a arte se mistura com experiências vividas.

Em Céu/Lugar, em Branco gelo ou então em Still, o artista repete um gesto romântico como o de Cozens ao olhar para as nuvens e observar os seus movimentos e transformações.

Com esses desenhos de memória a partir da contemplação da natureza, Moscheta nos fala de maneira simples da nossa transitoriedade terrena. Ao observar atentamente suas séries de desenhos, tem-se a sensação de que o que se olha não é uma imagem congelada, mas uma paisagem cujo elemento principal está em um lento e constante movimento, à beira da morte. Como se não existisse ali o instante, mas apenas a noção imperceptível do entrementes. Entre um quadro congelado e outro.

É uma estética que acaba por trazer a essas paisagens um questionamento sobre a representação do que se vê, como a realidade no mundo que habitamos. Não sabemos diferenciar o que foi imaginado do que foi realmente vivido pelo artista. Os desenhos confundem a nossa percepção para identificar o que é verdadeiro e o que é fantasioso nessas paisagens silenciosas.

A fatura precisa de Moscheta resulta em imagens perfeitas de um mundo que fica entre o falso e o real, uma dicotomia que mais lembra a fotografia em preto e branco, algo rudimentar, em que podemos perceber a granulação da imagem. Esse resultado lhes confere um sentido sublime, como o que se percebia no romantismo. São vistas distantes, que numa analogia com o movimento artístico entre o final do século XVIII e começo do XIX, poderiam ser a representação do paraíso, ou do inferno – por sua vez assemelhados à sua descrição na obra do renascentista italiano Dante Alighieri.

Como se fossem vistas instáveis, essas são imagens, captadas pelo olhar mecânico da fotografia, de um mundo que se desmaterializa lentamente, imperceptível à nossa (in)compreensão contemporânea da passagem do tempo. São visões inóspitas, atormentadas, que ficam na iminência de que algo aconteça. São as vistas dos desenhos de Moscheta.

Mas que paraísos ou infernos seriam estes? Nas suas vistas panorâmicas parece não haver lugar para o homem. O que se vê são ambientes naturais desolados.

As paisagens de Marcelo Moscheta recuperam emoções adormecidas na virtualidade da era contemporânea, em que vivemos mediados por imagens digitais, sem materialidade. O artista recupera o fazer artesanal e meticuloso nos seus desenhos. Um trabalho físico de fato, ao se debruçar sobre a superfície de uma folha de PVC e pacientemente criar sua arte.

Ao observarmos a trajetória de Moscheta, vemos, em sua insistência na questão da paisagem, também uma paixão desmedida por mapas – embora a cartografia ofereça somente representações vistas de cima de um lugar, uma região ou mesmo do globo terrestre, quando observado à distância. Mas eles oferecem a representação racional e também abstrata do plano da paisagem e o desejo do geógrafo de se fixar no lugar.

Ao encontrar mapas ortofotográficos, Moscheta imaginou algum futuro proveito, tanto pela memória neles impregnada quanto pela sua construção gráfica. Seu trabalho foi de subtração das informações alfabéticas do lugar. Tornou-o um espaço aberto, vazio e disponível a ser habitado pela imaginação. A única coisa acrescentada foi um carimbo, desses utilizados em escritórios de contabilidade onde se lê void, palavra que em inglês significa, entre outras muitas definições, vazio, vácuo, livre e até sem valor comercial.

O artista oferece ao observador o poder de habitar seus espaços recortados e vazios, segundo sua própria presença e imaginação.

A maior das nuvens: um epílogo


O sol brilha.
[...]
Eles escondem suas coisas embaixo de uma canforeira imponente; precisam tomar banho nus para chegarem secos à escola, e depois é sempre mais divertido. Chegaram às 7h20, a aula é às 8h30. Mergulham na bacia de água clara e sobem sem se cansar [...] Kinoko acaba de voltar para a areia já quente. Corre para a canforeira para se vestir; Akira mergulha, pela última vez. Kinoko levanta maquinalmente a cabeça: o sol bate na colina ao pé da qual eles se encontram; o pequeno caminho serpenteia, a alguns metros acima da enseada e, desviando-se dele, seriamente alcatroada e gravemente retilínea, encontra-se a estrada principal. Akira volta à superfície a 3 metros da margem, voltando-se para a irmã como sempre, e, enquanto Kinoko se abaixa para calçar a segunda meia, a silhueta tristemente familiar da diretora se delineia na estrada [...] São 8h13 [...] a diretora os viu [...] Akira tem uma idéia ainda mais absurda: mergulha novamente. Devem ser 8h14. Ele sabe que pode ficar no fundo durante longos minutos; segura-se em pedras musgosas e frias, em algas ásperas; a água está gélida.
[...]
É precisamente neste momento que o clarão nada habitual, de um azul muito bonito, bate na areia do fundo. Akira não se mexe mais. Depois sufoca. Um estrondo surdo, como que vindo das profundezas da Terra, varre toda a superfície da água. Akira sobe e fica de pé. Não entende. Nem percebe, de início que Kinoko não está mais lá. Toda a paisagem mudou, como num sonho.
[...]

A nuvem de Hiroshima é uma nuvem muito particular, uma nuvem que poucos homens viram antes, lá longe, numa zona militar do Novo México, uma nuvem prolongada até chão, com o pedúnculo esguio, uma nuvem assentada sobre uma base, como um cogumelo grotesco. Akira parou sobre a colina. Lentamente, a nuvem nova começa a perder sua base, derivando lentamente como um dirigível alemão sem piloto. Depois, a nuvem se tornou negra, de uma negritude como nunca mais se viu, perfeita, profunda como um abismo, a nuvem de Hiroshima fechou progressivamente todo o horizonte, faz quase noite em Hiroshima por volta do meio-dia, enquanto, se dermos as costas para a cidade, brilha um verdadeiro sol de verão. A nuvem ainda se estendeu até o ponto em que pareceu não mais se manter, e começou a chover; no entanto, a chuva era preta, inteiramente preta, e devolve a poeira dos corpos à terra. Choverá assim todas as noites, durantes semanas.

Aquela nuvem negra de Hiroshima, mais do que as de Marcelo Moscheta, é a maior que homem já inventou.



texto para o livro MARCELO MOSCHETA, editora BEI, 2011.